Por Leonardo Cipriano
Lembro-me de fazer compras com a minha mãe, quando enchíamos o carrinho com um preço que cabia no bolso. Recentemente, fizemos a compra do mês, enchemos o carrinho, mas o bolso quase transbordou. Apesar disso, não tivemos dificuldade em arcar com o escolhido. No caminho de volta e em casa, fiquei a refletir como milhões de brasileiros estão se organizando alimentarmente nesse momento em que está tudo extremamente caro. Seria com o auxílio emergencial de 2021 em 150 reais? Pouco provável.
É importante sabermos onde estamos e como chegamos até aqui. Entender como a desigualdade atinge e expõe pessoas à situação de insegurança alimentar, situação que ocorre quando uma pessoa ou um coletivo não come em quantidade e qualidade ideais.
O histórico da insegurança alimentar no Brasil aponta que de 2004 a 2013 houve uma tendência de diminuição de domicílios em situação de insegurança alimentar, porém,essa trajetória de descendência foi interrompida. Em outras palavras, quando compara-se a porcentagem de domicílios em situação de insegurança alimentar na PNAD 2013 com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, nota-se um aumento de 62,4%, saltando de 22,6% para 36,7%, o equivalente a 25,3 milhões de domicílios.
A segurança alimentar, que também vinha de uma trajetória de ascendência, sofre uma diminuição para o patamar mais baixo desde a primeira vez que os dados foram produzidos.Ou seja, segundo a PNAD 2004, cerca de 65,1% dos lares brasileiros encontravam-se em situação de segurança alimentar, já segundo a POF 2017-2018, esse número cai para 63,3%.
Existem três classificações de insegurança alimentar: leve, quando há preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos no futuro e qualidade inadequada dos mesmos, visando sua não diminuição quantitativa. Moderada quando já existe redução quantitativa dos alimentos entre os adultos e ruptura nos padrões de alimentação e grave, quando já existe redução quantitativa severa de alimentos também entre as crianças, ou seja, há ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre todos os moradores. Neste caso, a fome passa a ser uma experiência vivenciada no domicílio.
Como é de se imaginar, os números são diferentes entre si quando nos atemos ao recorte de raça. Se a pessoa de referência, ou seja, o responsável pela família, se declarou pardo, o percentual de insegurança alimentar se mostra acima dos 50%, sendo 50,7% para insegurança alimentar leve, 56,6% para insegurança alimentar moderada e 58,1% para insegurança alimentar grave.
Entretanto, nos domicílios em situação de segurança alimentar, esse grupo representou apenas 36,9%, ao passo que os lares cuja a pessoa de referência se declarou branca representam majoritariamente 51,5%. Cabe aqui ressaltar que mais de 54% da população brasileira é preta, o que evidencia as disparidades no tocante à insegurança alimentar.
A pesquisa ainda demonstra desigualdades regionais. Menos da metade dos domicílios do Norte (43%) e Nordeste (49,7%) tinham segurança alimentar, isto é, acesso pleno e regular aos alimentos. Os percentuais eram melhores no Centro-Oeste (64,8%), Sudeste (68,8%) e Sul (79,3%). A prevalência de insegurança alimentar grave do Norte (10,2%) era cerca de cinco vezes maior que a do Sul (2,2%).
Trazendo a questão para os últimos anos, especialmente na vivência da Covid-19, temos, de acordo com a pesquisa “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, que, com a intensificação da pandemia da Covid-19 no país, 59,3% dos brasileiros, ou seja, 125,6 milhões, estão em situação de insegurança alimentar, o que denota dizer que não comeram em quantidade e qualidade ideais desde a chegada do coronavírus.
O estudo mediu os níveis de insegurança alimentar no país e conseguiu ser ainda mais drástico que a pesquisa da Rede Penssan (Rede Brasileira em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) divulgada no início de abril de 2021, segundo a qual 116,8 milhões de pessoas conviveram com algum grau de insegurança alimentar nos últimos três meses de 2020.
Ressalta-se ainda que beneficiários do Bolsa Família são os que enfrentam os maiores níveis de insegurança alimentar no país, com 88,2%. Destes, 35% passam fome e outros 23,5% convivem com um nível moderado de insegurança alimentar.
Os resultados trazidos pela Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018 do IBGE relativos à situação dos domicílios brasileiros quanto à segurança alimentar evidenciam como o fenômeno da fome é resultado das diversas desigualdades presentes em nossa sociedade e é fruto de decisões humanas.
Dessa maneira, tratar o problema da fome como uma questão coletiva e concretizar o combate à fome com medidas governamentais é de extrema importância para o seu enfrentamento, bem como entender que esse grave problema social se entrelaça com vários outros, como a extrema pobreza e a ausência de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional efetivas. Desse modo, apenas com políticas sociais que garantam os direitos básicos, como é o direito à alimentação, é que o Brasil pode evitar voltar ao Mapa da Fome e retirar seus cidadãos de situações degradantes que milhões vivenciam hoje.
Referências:
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018. Análise da Segurança Alimentar no Brasil. Disponível em <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101749.pdf>
Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil. Publicado no Freie Universitat Berlin em 03/04/2021.
Imagem:
Shutterstock
Publicado por Leonardo Cipriano
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