Utilização de IA e big data nos processos seletivos como fato gerador de discriminação

Por Sabrina Shinohara

Com o avanço cada vez mais rápido das novas tecnologias no mundo contemporâneo, dilemas envolvendo suas implicações fáticas no Direito passaram a se sedimentar com mais frequência, apresentando-se como um dos mais inéditos e inexplorados desafios aos juristas e demais estudiosos nos tempos atuais.

Dentre os dilemas supramencionados, é possível identificar a repercussão do uso de tecnologias da informação e comunicação na esfera juslaboral da Quarta Revolução Industrial, sendo que, no presente artigo, iremos abordar a aplicação da inteligência artificial conjugada com mecanismos de tratamento de dados nos processos de contratação de novos empregados e as possíveis consequências discriminatórias que essa prática emergente pode acarretar. 

Seguindo uma tendência global, há mais de três anos, o Brasil conta com notícias envolvendo o emprego da inteligência artificial na contratação de trabalhadores, cabendo destacar que referida prática se viu em crescimento exponencial com o advento da pandemia Covid-19, em virtude da digitalização dos processos de recrutamento e seleção, cominada com o aumento dos índices de desemprego no território nacional. 

No entanto, em que pese as empresas visem a utilizar a tecnologia disponível com vias de ampliar a rede de contratação e reduzir a dependência de opiniões subjetivas de recrutadores humanos, medidas discriminatórias, excludentes e invasivas vêm sendo constatadas neste novo processo automatizador de recrutamento, valendo fazer menção ao caso da empresa Amazon.com, a ser debatido mais adiante. 

Para elucidar a problemática induzida pela utilização de IA nos processos de contratação, mostra-se fundamental clarificar o posicionamento do Direito Brasileiro acerca da discriminação no campo laboral. 

A discriminação é entendida por legisladores e doutrinadores a partir da característica da arbitrariedade, de forma que um ato discriminatório, a partir desta concepção, ocorre quando é intencional e arbitrário, indo contra as previsões legais (MOREIRA; NETO, p. 4). Entretanto, outros entendimentos do Supremo Tribunal Brasileiro divergem nesta questão, ao afirmarem que a exclusão social pode ocorrer mesmo na ausência de tratamento arbitrário de indivíduos, uma vez que existe também uma dimensão psicológica responsável pela internalização de estereótipos pré-estabelecidos. 

A legislação pátria contempla normas que tem como pressuposto a possível incidência da discriminação nas diferentes fases da relação de emprego, seja na admissão, na execução contratual, ou na cessação do vínculo. 

Em relação à fase pré-contratual, tem-se o artigo 373-A da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de modo que, dentre suas medidas antidiscriminatórias, encontram-se a vedação de publicação de vagas, calcada em critérios discriminatórios direcionados a um grupo específico; a proibição da exigência de atestado de estado gravídico ou esterilização na admissão a um emprego e, por fim, o impedimento de adoção critérios subjetivos para deferimento de inscrição ou aprovação em concursos e em empresas privadas. 

Sobre a fase contratual propriamente dita, por sua vez, vislumbra-se que a Constituição Federal de 1988, nos termos do art. 7º, incisos XXX, XXXI e XXXII, expressamente proíbe a diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão, por motivo de deficiência, sexo, idade, cor ou estado civil, bem como a distinção entre funções ou profissões. 

Ademais, a questão da equidade no valor do salário é novamente resguardada na CLT, em seus artigos 5º, que estabelece que todo trabalho de igual valor deverá receber igual salário, e 461, § 6º, o qual prevê o pagamento de multa, em favor do empregado que venha a ser discriminado no valor de seu salário por motivo de sexo ou etnia. 

Passando por uma análise da vedação da discriminação em seu aspecto mais amplo, a Constituição Federal, em seu preâmbulo, promulga a igualdade como um dos “valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, tal qual elege como um objetivo da República a promoção do bem de todos, sem preconceitos (art. 3, inc. IV), estatui o princípio da igualdade (art. 5º, caput) e prevê a punição de qualquer discriminação atentatória dos direitos de liberdades fundamentais (art. 5º, inc. XLI).

Conceituada pela engenharia da computação como máquinas dotadas de capacidade para elaborar soluções tecnológicas e realizar atividades de modo considerado inteligente e independente de ação humana, a inteligência artificial encontra-se extremamente ligada  à técnica “machine learning”, que, usualmente,  consiste em programas de aprendizado repetitivo a permitir o aperfeiçoamento automático de máquinas conforme a experiência e o contato com padrões 

Assim, pode-se dizer que a inteligência artificial, conjugada com big data – isto é, acúmulo de dados e informações em escala aquém da capacidade de armazenamento de software comuns -, oferece mecanismos de tratamento de um grande conjunto de dados e tomada de decisões automatizadas pela própria máquina, com base na análise de tais dados e nos padrões neles existentes, com o poder de realizar previsões. 

Aplicando tais instrumentos nos processos seletivos para a contratação de trabalhadores, Pauline Kim, professora da universidade de Washington, aponta duas frentes de uso: (i) emissão de propagandas de vagas direcionadas pelos anunciantes almejando atingir determinado público enquanto este navega na web; e (ii) utilização de algoritmos de triagem e pontuação de currículos, cujo objetivo é a construção de perfis de trabalhadores para poder classificá-los por parâmetros pré-selecionados. 

Primeiramente, quanto ao direcionamento de vagas, o empregador conta com a evidente possibilidade de infringir o princípio da igualdade e os preceitos antidiscriminatórios, uma vez que, a depender dos critérios adotados para quem será incluído ou excluído de ter acesso a uma determinada postagem, se estes forem relativos a gênero, idade, etnia ou situação familiar, reproduzirão medida que violará o art. 373-A, I, da CLT, pois sequer dará a oportunidade de um grupo específico se candidatar para o emprego anunciado. 

No que tange à aplicação de algoritmos na pré-seleção de currículos levando em conta características selecionadas e introduzidas no sistema pelos empregadores, a possibilidade de desenvolver perfis automatizados de candidatos gera o risco de estabelecimento de categorizações direta ou indiretamente discriminatórias. As novas tecnologias que calculam a  probabilidade de encaixar determinado trabalhador em uma posição vaga não têm como assegurar que os critérios levados em consideração são justos e não meramente frutos dos preconceitos advindos de seu programador.

Nesse sentido, vale salientar que, sendo a inteligência artificial um sistema, cujo raciocínio se baseia em sua própria experiência e em informações que se repetem e mostram-se recorrentes, esta tecnologia, além de carregar a subjetividade do sujeito que criou o sistema, está sujeita aos mesmos estigmas e prejulgamentos vigentes na época e sociedade em que é empregada, embora, de início,  aparente ser segura e imparcial. 

Destarte, se um algoritmo de contratação opera fazendo comparações com os atuais funcionários do empregador, ele tenderá a reproduzir as mesmas escolhas enviesadas desta empresa, podendo repetir a exclusão de certos grupos, caso as práticas de contratação anteriores o tenham feito.  Um caso que demonstrou bem essa hipótese é do processo seletivo elaborado pela multinacional Amazon.com, posteriormente acusada de cometer discriminação de gênero. 

Em 2014, a empresa em questão construiu um sistema de inteligência artificial que revisava rapidamente os currículos de candidatos, pontuando estes com uma a cinco estrelas. Ocorre que, programada para ter como referência os perfis dos candidatos ao emprego durante os 10 anos anteriores, a IA aprendeu que os homens eram preferíveis e começou a preterir as mulheres, classificando aqueles como melhores e penalizando os currículos que contivessem a palavra “mulher”, haja vista que, em um aspecto geral, a indústria de tecnologia conta com o domínio masculino. 

Ainda, com relação às diferentes formas passíveis de reproduzir práticas discriminatórias, importante pontuar que estas podem se dar não só através do acolhimento de critérios explicitamente desvirtuados, como a etnia ou orientação sexual de uma pessoa, mas também a partir da adoção daqueles que, mesmo se assemelhando neutros, indiretamente afetam determinado grupo de indivíduos portadores de características legalmente protegidas. Um exemplo disso seria a escolha de candidatos com base em seus códigos de endereçamento postal (CEP), quando se sabe que determinados bairros são mais habitados por este ou aquele grupo de certa etnia ou religião. 

Em vista de tudo o que foi explicitado, imperioso evidenciar o principal ponto de controvérsia sobre o processo seletivo automatizado, qual seja, a falta de transparência, de modo que, uma vez prejudicados por critérios muitas vezes aleatórios e capazes de gerar diferenciações de tratamento, candidatos se veem na rara oportunidade de até mesmo identificarem o que lhes atingiu para tomar as devidas medidas cabíveis. 

Desta feita, com vias de amenizar os impactos proporcionados pelo uso da IA nos processos de recrutamento, mostra-se imprescindível a aplicação reforçada do chamado direito de explicação, previsto no artigo 20, § 1º, da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). 

Nos moldes de tal instituto, diante da solicitação de determinado titular de dados, a empresa deverá fornecer informações claras e adequadas acerca dos critérios e procedimentos utilizados no tratamento dessas informações. 

Por fim, tão importante quanto inovar e otimizar a maneira como são feitos os processos de recrutamento de novos empregados, é estabelecer parâmetros mínimos sobre como esse procedimento se dará e poderá chegar ao conhecimento dos candidatos. O advento da tecnologia tem como objetivo a transformação social para o melhor, e não apenas a reprodução de práticas discriminatórias já existentes, aparentando estar sob uma mentalidade estritamente neutra e imparcial. 

Referências Bibliográficas

Imagem: IEL

Publicado por Maria Fernanda Marinho


Siga o JP3!

Instagram: @jornalpredio3

Facebook: fb.com/jornalpredio3


Mais notícias e mais informações:


Jornal Prédio 3 – JP3 é o periódico online dos alunos e dos antigos alunos da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, organizado pelo Centro Acadêmico João Mendes Júnior e pela Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie (Alumni Direito Mackenzie). Participe!

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Crie um site ou blog no WordPress.com

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: