Entre o Neoliberalismo e a Necropolítica: O fim da história?

Com o declínio das ditaduras na América do Sul durante a década de 80, a doutrina neoliberal foi introduzida em nosso debate público. Mais especificamente, em um cenário em que o governo militar parecia incapaz de encontrar soluções para os problemas nacionais brasileiros que, àquele momento, se mostravam insustentáveis, como a inflação e a dívida externa, por exemplo. Assim, o Neoliberalismo se propôs como uma alternativa política capaz de solucionar não só essas, mas outras questões da realidade brasileira, aproveitando-se de um momento em que a sociedade civil reivindicava maiores liberdades e participação política através de discursos individualistas e da ineficiência da máquina pública. Isso, além da submissão do Brasil aos critérios estipulados pelo Fundo Monetário Internacional para a concessão de crédito e, depois, ao adimplemento da dívida pública que passavam por determinadas modificações na política interna. Foi durante o governo do General Ernesto Geisel, em uma tentativa de fugir dos efeitos do choque do petróleo de 1973 e dar um último fôlego ao “milagre econômico” dos anos anteriores, que foram adotadas, além dos empréstimos junto ao FMI, medidas de caráter intervencionista, como, por exemplo, a proibição da importação de automóveis – estabelecida dentro da lógica da substituição das importações. E, então, alguns anos mais tarde, o neoliberalismo já se mostrou introduzido em nosso debate público, quando, no governo Collor, o presidente chama os automóveis produzidos nacionalmente de carroças, ao abrir os mercados brasileiros às montadoras estrangeiras.


Some-se a isso a queda do mundo soviético, primeiro com a queda do Muro de Berlim, depois com as dissoluções da União Soviética e da Iugoslávia – o Socialismo, segundo a visão neoliberal, fracassara em encontrar soluções para os problemas mais modernos da humanidade, bem como, no Brasil, tinham fracassado os militares. Some-se a isso, ainda, a transformação do capitalismo em financeiro, com a ascensão dos mercados financeiros e a presença cada vez maior de um capital fictício, que mudou a inserção das elites econômicas nos processos de produção de riqueza, afastando-as das próprias cadeias de produção. Logo, o neoliberalismo, idealizado pelas escolas de Chicago e Viena e experimentado no Chile de Pinochet e no Reino Unido, afirmou sua hegemonia.


Ou, pelo menos, é isso que defende Francis Fukuyama em seu polêmico artigo “O fim da história”: a melhor alternativa para a humanidade, capaz de superar nossas questões, seria o neoliberalismo, materializado nas democracias liberais ocidentais, levando-nos, assim, ao fim da história, o suposto ponto de maior progressão política da humanidade, a partir do qual seríamos capazes de melhor desenvolver-nos e encontrar soluções para os problemas nacionais e internacionais. Contudo, bem sabemos que a história se desenrolou de uma maneira diferente e mostrou não estar perto de seu final, ou, melhor colocando, demonstrou ainda não sermos capazes de superar nossas contradições, colocando, em xeque a tese de Fukuyama. Mas, como já pontuou Zizek, o pensamento político hegemônico ainda é o neoliberalismo, apesar de suas limitações e mesmo que sua lógica fundamental esteja evidenciada como falha, ainda não encontramos um projeto político alternativo que seja capaz de superar a atual composição econômica.


Mais do que isso, o neoliberalismo mostra, cada vez mais, sua incapacidade em oferecer soluções à humanidade, sabe-se que, por exemplo, após a crise de 2008, houve, na verdade, um resgate de textos marxistas e marxianos a fim de encontrar um amparo para a emergência que vivíamos. E, tratando especificamente de nosso país, essas limitações da doutrina neoliberal tornam ainda mais insustentáveis nossas contradições na medida em que, além de não contemplar soluções, também parece haver desinteresse em superar algumas delas, mantendo uma lógica socioeconômica funcional para a burguesia nacional.


Em um país de capitalismo tardio, com um legado colonial maldito e inserido na periferia dos sistemas internacionais, o neoliberalismo parece funcionar melhor como instrumento para manutenção de uma determinada ordem econômica e controle social do que como alternativa política para busca do progresso. Assim, passamos a viver sob uma normalizada necropolítica, em que o Estado é incapaz de manter seus deveres para com a sociedade, talvez não sendo capaz nem de manter a si próprio, tornando-se omisso, deixando o povo à deriva esperando a morte pela fome, pela peste ou pela violência. Entre o neoliberalismo e a necropolítica, a omissão deliberada e a corrosão interna do Estado, o país se perde, enfermo e sem produzir uma resposta melhor a sua doença.


Então, o cenário contemporâneo brasileiro é um retrato da face mais horrorosa do neoliberalismo: no Brasil em que a ordem da vez é ser um tolo patriota e os braços do Estado são mutilados num entreguismo descomunal e amarrados por uma política de teto de gastos natimorto, projetado exatamente para restringir a atuação estatal. Fomos de um golpe de Estado a um governo militar que flerta com o fascismo e promove o apagamento da história, tudo sob a chancela e conivência da doutrina neoliberal, e poder-se-ia listar durante inúmeras linhas mais o dano que consome todas as esferas do Estado: a precarização do SUS; a negligência da pandemia; o aparelhamento das instituições e agências públicas; os sucessivos cortes nos orçamentos de universidades; as dezenas de assassinatos de militantes, jornalistas e ativistas; e as privatizações movidas sob a suposta ineficiência estatal na prestação de serviços básicos, mas que, atualmente, fazem-se sentir nos índices de inflação.


O neoliberalismo e a necropolítica são, hoje, indissociáveis, cúmplices, sendo o segundo nada mais que a consequência prática do primeiro: os efeitos de uma agenda política completamente subserviente e descabida.


Vivemos, sem eufemismo nenhum, num horror nacional que coloca em xeque mesmo as nossas hipóteses de recuperação no futuro, e é nessa conjuntura que as esquerdas brasileiras têm de apresentar uma alternativa política ao neoliberalismo capaz de conter e reparar todo arcabouço do Estado que foi corroído, e socorrer a sociedade que sofre com todas as nossas contradições históricas, herdadas dos governos Geisel, Figueiredo, Collor e mesmo de um passado mais distante, agravadas pelas crises nacionais e internacionais. Como frisado, caminhamos cada vez mais para um ponto de insustentabilidade do atual regime, no qual, essa alternativa ainda não encontrada, é imprescindível. A tarefa das esquerdas brasileiras é, portanto, a mesma posta há trinta anos: superar a hegemonia neoliberal e construir um projeto político viável que seja capaz de solucionar as questões que hoje fazem nossa nação sangrar, e a cada dia ela se torna mais urgente. O suposto ápice político humano trouxe-nos até aqui, bem longe do fim da história, e agora devemos encontrar uma maneira de resgatar o futuro: de fato, o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer.

Escrito e publicado por Guilherme Calazans

Foto: reprodução, Folha de São Paulo

Referências

Nancy Fraser – O Velho Está Morrendo e o Novo Não Pode Nascer, Autonomia Literária, 2020

Mark Fisher – Realismo Capitalista: é Mais Fácil Imaginar o fim do Mundo do que o fim do Capitalismo?, Autonomia Literária, 2020

Achille Mbembe – Necropolítica, N-1, 2018

Francis Fukuyama – O fim da história e o último homem, Rocco, 2015

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