Essa sensibilidade para mudança, sem perder de vista as exigências da racionalidade, é uma das mais importantes características de Norberto Bobbio e a lição mais profunda que podemos extrair de seu pensamento.
Tercio Sampaio Ferraz Junior
Por Jade Gomes de Souza
Devido a sua relevância para o debate jurídico, a obra de Norberto Bobbio “Teoria do Ordenamento Jurídico” terá os principais pontos expostos a seguir. Sua importância se dá no fato da obra ser “voltada para esclarecer as operações intelectuais e práticas na criação do direito e na sua aplicação”, como afirma o professor Celso Lafer. Daí a magnitude da temática, sendo uma das obras clássicas que todo estudante de direito deve conhecer, pois, como salienta o professor Tercio Sampaio Ferraz Junior, “Bobbio é um dos primeiros a voltar-se para a metodologia da ciência do direito em termos de análise linguística”, o que reflete a profundidade da obra em tela.
De início, o autor busca explanar o que é o direito. Para Bobbio, o direito é um termo “utilizado indiferentemente tanto para indicar uma norma jurídica particular quanto a um determinado complexo de normas jurídica”, ou seja, fica evidente que, para se falar de direito, deve-se haver normas, sejam essas particulares ou complexas, formando um tipo de sistema normativo. Tal sistema é o ordenamento jurídico. Sobre este Bobbio afirma isto: “As normas jurídicas não existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si, esse contexto de normas costuma ser chamado de ordenamento”. Diante dessas afirmações, infere-se afirmar que o direito é o conjunto ordenado de normas que indica um tipo de sistema normativo e, com isso, torna-se crucial, para o entendimento, explanar o conceito sobre essa teoria do ordenamento e do sistema jurídico.
A princípio, vale frisar que as normas são tidas como jurídicas porque compõem o ordenamento jurídico, sendo, em suma, dotadas de sanção, eficácia e validade. Enquanto sanção tem por significado a pena ou recompensa que corresponde à violação ou execução de uma lei – Bobbio afirma que há sanções negativas (imposição de penalidades aos que, por ação ou omissão, descumprem a norma jurídica) e sanções positivas (através de “bônus”, como isenção de taxas, motivam o cumprimento da norma legal) – a eficácia é aquela que produz efeitos, ao passo que a norma é tida como válida ao integrar o ordenamento. Além disso, algumas normas podem ser válidas, porém, não eficazes, como afirma Bobbio, e por isso definir o termo direito com base nas normas isoladas seria incongruente, já que nem todas as normas seguem os quesitos de eficácia e sanção. Logo, é necessário definir tal conceito com base no conjunto complexo de normas que compõem o todo do sistema jurídico.
Ademais, dentre as normas que integram o ordenamento jurídico, há uma divisão entre as que prescrevem condutas, que podem ser classificadas entre as que permitem, obrigam ou proíbem uma ação; e as denominadas normas de estrutura ou competência. As primeiras, trazem em seu corpo informações sobre a “conduta que se deve ter ou não ter”; a segunda, não fixa condutas, mas “as condições e os procedimentos para produzir normas válidas de conduta”. Por isso, as normas de estrutura podem ser consideradas como normas para a produção jurídica, já que regula os procedimentos de regulamentação jurídica.
Urge destacar que tal ordenamento, devido a pluralidade de normas que o compõem, possui em si alguns problemas que são abordados pelo autor. Sendo esses os seguintes: hierarquia das normas, quando se aborda sua unidade; antinomias jurídicas, quando se trata de seu sistema jurídico; lacunas do direito, quando se verifica a plenitude do ordenamento jurídico, e reenvio, quando se trata das relações entre os diversos ordenamentos jurídicos existentes. Esse impasse é resultado da diversidade tanto nas relações existentes entre as normas, quanto nas diversas normas que o compõem.
Embora haja possíveis problemas, isto não anula a uniformidade da ordem jurídica. Quanto a isso, Bobbio define o sistema jurídico como sendo o próprio ordenamento, sendo que sistema se trata de “uma totalidade ordenada”, ou seja, um conjunto de entes que tenha lógica entre si e o todo. Logo, se é um sistema, significa dizer que as normas, que compõem o ordenamento, possuem coerência entre elas de modo que a ordem possa ser estabelecida e verificada.
No que se refere a essa ordem, Kelsen, mencionado por Bobbio em sua obra, subdivide o sistema em dois: estático e dinâmico. Enquanto no primeiro, as normas estão ligadas entre si pelo conteúdo (proposições de um sistema dedutivo); no segundo, estão ligadas entre si pela forma (por meio da autoridade que as positivou). Assim, o estático prescreve um comando de alcance mais geral, ao passo que o dinâmico aborda uma autoridade indiscutível.
Assim sendo, pode-se inferir que o sistema jurídico é o conjunto de normas jurídicas interdependentes, reunidas segundo um princípio unificador, ou seja, o próprio ordenamento jurídico é esse princípio e possui uma norma fundamental na qual as demais normas se justificam, sendo essa norma fundamental que confere a unidade do ordenamento.
Ao abordar a temática da unidade do ordenamento jurídico, Norberto Bobbio inicia seu pensamento tratando das fontes que são “atos e fatos dos quais o ordenamento jurídico faz depender a produção de normas jurídicas”, isto é, que originam as normas que compõem tal ordenamento. Este pode ser classificado como simples ou complexo, “segundo sejam suas normas derivadas de uma só ou de várias fontes”. Isso ocorre, porque a necessidade por normas que regulam a vida em sociedade é grande e apenas um órgão ou poder isolado não seria capaz de suprir tal demanda. Com isso, o poder supremo recorre a dois expedientes: recepção de normas já prontas produzidas por ordenamentos diversos e precedentes e a delegação do poder de produzir normas jurídicas a órgãos ou poderes inferiores. Além disso, as fontes indiretas subdividem-se em fontes reconhecidas e fontes delegadas.
O costume, nos ordenamentos estatais modernos, é um típico exemplo de recepção de fonte reconhecida, quando o legislador se refere ao costume em matérias não reguladas pela lei, e, também, de fonte delegada, quando órgãos estatais estão autorizados a produzirem normas jurídicas com base no comportamento uniforme da sociedade. O costume é um produto natural, enquanto regulamentos e decretos administrativos são artificiais. Outro exemplo de fonte delegada é o regulamento (confiado ao poder executivo, sua produção, pelo poder legislativo).
É vital salientar que o poder constituinte (também chamado de “originário de fonte das fontes”) é o poder supremo no qual o ordenamento jurídico encontra sua justificação. Isso auxiliará na unidade do ordenamento jurídico. Para Bobbio, quando as normas decorrem de uma só fonte, o ordenamento é simples e, consequentemente, unitário, porém, o ordenamento, quando complexo e possui mais de uma fonte, também é unitário. Para justificar tal acontecimento, o autor aborda a teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico, elaborada por Kelsen, que tem por núcleo a seguinte premissa: “as normas de um ordenamento não estão todas num mesmo plano”. Com isso, há normas superiores e normas inferiores, estas dependem daquela. No topo da pirâmide está a norma suprema, considerada por Bobbio como norma fundamental, que não depende de nenhuma outra e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. Sem a norma fundamental o ordenamento inexistiria, como afirma Bobbio, seria apenas “um acumulado de normas, não um ordenamento”.
Vale enfatizar que, por existir normas superiores e normas inferiores, o ordenamento jurídico apresenta uma estrutura hierárquica. Diante disso, os termos “produção” e “execução” surgem fazendo menção ao posicionamento da norma na estrutura. Assim, uma norma é executiva em relação a norma superior e produtiva em relação a norma inferior. Tal relação tem como exemplo as leis ordinárias que executam a Constituição e produzem os regulamentos; os regulamentos executam as leis ordinárias e produzem os comportamentos conforme a elas.
Norberto Bobbio afirma que ainda que as fontes do ordenamento jurídico complexo sejam numerosas, esse ordenamento constitui uma unidade pelo fato de que todas as fontes do direito podem ser deduzidas de uma única norma, ou seja, a norma fundamental.
Mais adiante, em seu terceiro capítulo, o autor aborda o conceito da coerência do ordenamento jurídico. Ao explanar tal conceito, ele inicia sua análise sobre a distinção existente entre o sistema jurídico e o ordenamento jurídico, recorrendo ao pensamento de Kelsen para tratar sobre sistemas, que se subdividem entre estáticos e dinâmicos.
No sistema estático, as normas estão interligadas entre si pelo conteúdo, enquanto no dinâmico, as normas são sucessivas delegações de poder, isto é, estão diretamente atreladas à ideia de autoridade que as colocou, independentemente do conteúdo das normas. Desta forma, Bobbio entende, assim como Kelsen, que o ordenamento jurídico é um sistema dinâmico, pois se relacionam por um aspecto formal através da autoridade e não por um aspecto material, ou seja, por um conteúdo abordado. Logo não é estático, isto é, o enquadramento das normas é julgado com base num critério meramente formal.
Além disso, a construção das normas se dão, ou através de um processo dedutivo, em que se parte de princípios gerais para chegar em situações mais individualizadas ou pode ser através de um processo indutivo em que se parte de uma série de situações semelhantes para tentar chegar a algo que é universal. Sempre levando em conta que deve haver uma compatibilidade entre as normas, já que não existem normas incompatíveis.
Dessa relação entre normas, surgem alguns conflitos aparente de normas, dentre eles há as denominadas antinomias, que é o encontro de duas normas incompatíveis, em que ambas não podem ser verdadeiras no caso em concreto. Se diz que é “aparente”, pois, diante da incompatibilidade, há uma forma para solucionar. Uma das finalidades da interpretação jurídica é eliminar as antinomias através de alguns critérios, que são eles: critério cronológico, em que lei posterior prevalece sobre a anterior; critério hierárquico, em que lei superior prevalece sobre lei inferior e o critério da especialidade, em que lei especial prevalece sobre a lei geral.
Os critérios mais fortes são o hierárquico e o da especificidade. Pode ocorrer de o conflito ser entre os critérios, com isso, alguns critérios prevalecem sobre outro: hierárquico prevalece sobre o cronológico, especialidade prevalece sobre o cronológico, entre especificidade e hierárquico não há resposta precisa, ou seja, depende da análise do caso em concreto. Embora o excesso de normas originem as antinomias, há uma coerência que possibilita a solução do conflito normativo que mantém a totalidade ordenada.
Ademais, para o autor, quanto à completude do ordenamento, as principais características do ordenamento jurídico são as seguintes: unidade, coerência e completude. A unidade está atrelada à hierarquia das normas; coerência se relaciona com as antinomias e com a completude, que está relacionado ao fato de que o juiz não poderá deixar de julgar um caso por falta de lei.
A princípio, é indispensável recordar os conceitos sobre unidade e coerência do ordenamento jurídico outrora trabalhados. O ordenamento jurídico é um conjunto de normas jurídicas. Na visão de Bobbio, quem fundamenta a constituição federal é a norma fundamental, que é o poder constituinte originário; enquanto na visão de Kelsen, quem a fundamenta é a norma hipotética fundamental. É essa hierarquia que confere ao ordenamento jurídico unidade. Além disso, o ordenamento é constituído por normas jurídicas que se relacionam entre si, ou seja, o ordenamento é um sistema, podendo este ser dinâmico ou estático. Dessa relação, pode-se surgir conflitos aparentes entre normas, denominados antinomias, que são resolvidas com os seguintes critérios: cronológico, especificidade e hierárquico.
Isso posto, é mister salientar que embora existam lacunas no ordenamento, tratando-se da ausência de lei, o juiz não poderá deixar de julgar o conflito presente na sociedade. Bobbio afirma que as normas não estão isoladas, ou seja, relacionam-se entre si como em um sistema e por isso não há motivo para não solucionar as lides, por mais diversas que elas sejam. Com isso, determinado ordenamento jurídico é completo quando o juiz pode encontrar nele norma para regular qualquer caso que se lhe apresente. Por consequência, quando se diz que existe uma completude significa que existe uma forma de regular determinado caso ainda que falte a lei, porque sempre vai existir uma forma para encontrar uma solução para o problema apresentado.
Assim sendo, completude é um sistema completo, no qual não terá ausência de nenhuma norma (norma é gênero que tem como espécie os princípios, os costumes e as leis), logo, o “dever ser” vai sempre estar positivado no ordenamento. Diante disso, o juiz, que não pode deixar de solucionar as lides, ao julgar um caso, que não possui respaldo na lei, deve recorrer ao art. 4º da LINDB que diz: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá de acordo com a analogia, os costumes e os Princípios Gerais do Direito”, ou seja, utilizamos a integração das normas que, além de ser realizada por intermédio da analogia, dos costumes e dos Princípios Gerais do Direito, tem como função mitigar as lacunas.
Analogia, o primeiro recurso utilizado pelo juiz quando não existir uma lei (isso numa visão de positivismo jurídico em que a fonte prioritária do direito é a lei) recorre a decisão proferida sobre um caso semelhante ao que está para ser julgado a fim de suprir a lacuna existente na lei. Tal decisão é buscada na jurisprudência, conjunto de decisões dos tribunais materializada nos acórdãos. Recorre-se aos costumes quando não se encontram casos semelhantes na jurisprudência. Os costumes são hábitos reiterados e aceitos por determinada sociedade e em determinado período histórico. Se não houver costumes, busca-se respaldo nos princípios gerais do direito, que também são normas, mas com características mais gerais, por serem mais abstratos com um conteúdo valorativo maior e com maior abrangência, o que os tornam vagos.
É fulcral sublinhar que o princípio é a base e o fundamento, podendo não estar explícito na lei, como no caso do conceito de justiça e equidade, mas vigente nas doutrinas dos mais diferentes ramos do direito, como por exemplo o princípio da legalidade presente no ramo do direito penal.
Desta forma fica evidente que a completude é uma condição necessária para os ordenamentos. Duas são as regras que vigoram: o juiz é obrigado a julgar todas as controvérsias que se apresentarem a seu exame e ele deve julgá-las com base em uma norma pertencente ao sistema. Além disso, o dogma da completude é enraizada em três pressupostos: a preposição maior de cada raciocínio jurídico deve ser sempre uma norma jurídica; essa norma deve ser sempre uma lei do Estado, ou seja, posta pelo Estado e que tenha, com isso, autoridade; todas essas normas devem formar no seu conjunto, uma unidade. Urge frisar que essa completude sofreu críticas durante os anos, pois o Direito constituído está cheio de lacunas e para preenchê-las é necessário confiar no poder criativo do juiz, porque nem sempre é possível alcançar a completude.
A completude não é apenas uma das principais características do ordenamento jurídico, mas de um sistema completo no qual não há ausência de nenhuma norma, ou seja, em que o Direito nunca falta.
O autor finaliza sua magnífica obra salientando a existência de diversos ordenamentos jurídicos e as várias relações entre eles. A obra em tela apenas reflete parte da grandeza de seu autor que buscou esclarecer os mais divergentes pontos presentes no ordenamento jurídico. Dessa forma, é nítido que não apenas a criação do direito, mas também a sua aplicação abarcam profundas complexidades dignas de profunda análise.
REFERÊNCIA
Teoria do ordenamento jurídico / Norberto Bobbio; tradução de Ari Marcelo Solon; prefacio de Celso Lafer; apresentação de Tercio Sampaio Ferraz Junior. São Paulo: EDIPRO, 2. Ed. 2014
Publicado por Jade Gomes de Souza
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