A ilegitimidade da restrição às atividades religiosas coletivas

Por Carlos Roberto Parra

Embora seja consenso a necessidade de combater a pandemia de COVID-19, opiniões divergem a respeito dos métodos mais apropriados de prevenção, sobretudo quanto ao equilíbrio com o aspecto econômico. Enquanto o programa de vacinação caminha a passos lentos, medidas restritivas vêm sendo tomadas por governadores e prefeitos a fim de conter o avanço do vírus que já matou mais de 300.000 pessoas[1]. O que, em regra, não deveria ser olhado com suspeita, acaba por atrair uma gama de críticas por um motivo fundamental: a inconstitucionalidade de algumas das medidas adotadas. Pois é, não vale tudo no combate ao vírus.

No dia 11 de março de 2021, foi anunciada pelo Governo do Estado de São Paulo a “fase emergencial”, conhecida informalmente como “fase roxa” do plano de prevenção ao COVID-19[2]. As medidas que compõem esta fase são ainda mais restritivas que as da “fase vermelha”, o que levou o Governador João Dória a dar explicações sobre um suposto lockdown: “Nós não estamos fazendo lockdown em São Paulo. É a fase emergencial, mais restrita e mais dura, mas não é lockdown[3]. Entre as medidas da nova fase, incluem-se o teletrabalho obrigatório em órgãos públicos, escritórios e qualquer atividade desde que o setor não seja essencial e a proibição de entrega de alimentos e produtos ao cliente em estabelecimentos comerciais. Além disso, algumas atividades sofreram restrição completa, como é o caso dos serviços de retirada de todos os setores, lojas de materiais de construção, atividades esportivas coletivas e celebrações religiosas coletivas[4].

Em meio a debates a respeito do impacto econômico dessas medidas e trocas de farpas entre o Presidente da República e o Governador do Estado de São Paulo, outra celeuma emergiu e atraiu para si acaloradas discussões: a proibição de celebrações religiosas coletivas. Embora as discussões acerca do tema remontem aos primeiros meses da pandemia – como na a carta da Ação Reformada de Cultura e Ação Política (ARCAP) destinada ao Governador Paulo Câmara (PE) onde se lê: “Tudo o que requeremos, governador, é a liberdade para exercer nosso direito constitucional de decidir praticar nossa religião, ainda que com toda cautela e protocolos”[5] – o conflito retornou mais forte com o anúncio das novas restrições.

Como já dito, não vale tudo no combate ao vírus, e algo que não vale é a violação à liberdade de culto. Segundo a Constituição Federal (art. 5º, inciso VI): “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”[6]. No mesmo sentido, a Declaração Universal de Direitos Humanos também garante, em seu Artigo 18, a liberdade não apenas de crença, como de culto: “Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular.”[7] Não é diferente a afirmação contida no Pacto de São José da Costa Rica, no item 1 do Artigo 12: “Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. O direito mencionado implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.”[8]

Resta clara a violação de um princípio básico de Direitos Humanos impetrada sob o pretexto de combate ao COVID-19. A situação se torna ainda mais controversa ao se notar que, no dia 12 de março de 2021, um dia após o anúncio das novas restrições, João Dória tenha sancionado a Lei de Liberdade Religiosa do Estado de São Paulo, de autoria da Deputada Estadual Damaris Alves (PSDB)[9]. O texto da lei 17.268/20, no parágrafo primeiro do Artigo 14, dispõe especificamente que “É vedado ao poder público estadual interferir na realização de cultos ou cerimônias, ou obstaculizar, por qualquer meio, o regular exercício da fé religiosa dentro dos limites fixados na Constituição Federal e em lei.”[10] Como quem dá com uma mão e toma com a outra, João Dória confunde sua população e, numa tentatica de tergiversar, escora-se nos mantras “fique em casa” e “salve vidas” como se neles residisse todo o motivo da existência humana.

Diante da clara inconstitucionalidade – bem como do desrespeito a outros dispositivos legais – defensores da restrição aos cultos evocam a carta-coringa de toda discussão jurídica: “nenhum direito é absoluto”. Para isso, fazem uso de dispositivos como o item 3 do Artigo 12 do Pacto de São José da Costa Rica: “A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.”[11] À primeira vista, isso parece colocar uma pedra sobre qualquer discussão a respeito da legitimidade da proibição de cultos coletivos no Estado de São Paulo. Mas será que é assim mesmo?

Conforme os Doutores Thiago Vieira e Jean Regina, “a liberdade de culto, especialmente em sua expressão comunitária, pode ser restringida por razões públicas, desde que seja o único meio para se alcançar o fim perseguido e a restrição seja razoável, não existindo outro meio menos restritivo.”[12] É extremamente difícil, senão virtualmente impossível, afirmar que esse seja o único meio para alcançar o fim perseguido ou que não existam outros meios menos restritivos para a contenção do vírus. Isso se torna ainda mais perceptível à luz do fato de que a liberdade de culto é inviolável até mesmo quando decretado Estado de Defesa ou Estado de Sítio, conforme o texto dos artigos 136 e 139 da Constituição Federal. “E, até o presente momento” – escrevem Vieira e Regina – “não houve a decretação de uma das modalidades excepcionais de funcionamento da Constituição. Estamos ainda, mesmo com a pandemia, sob a plena vigência da nossa democracia tal como pensada para funcionar desde 1988.”[13]

Semelhante compreensão é compartilhada pelo Instituto dos Advogados do Brasil (IAB). Gilberto Garcia, presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa do Instituto, afirmou que “os templos de todas as religiões devem ficar abertos, desde que sejam respeitadas as medidas sanitárias, como impedimento de aglomeração, distanciamento e higienização”.[14] Esse parecer foi endossado pela Deputada Damaris Moura, que afirmou que “Tudo que subtrai o valor humano viola o princípio basilar do Estado brasileiro, que é o de proteger a dignidade humana, da qual também faz parte o direito à liberdade religiosa”.[15]

Outrossim, o Procurador-geral da República, Augusto Aras, enviou pedido ao Supremo Tribunal Federal para que este suspendesse os decretos que proíbem a realização de cultos, missas ou qualquer espécie de atividade religiosa coletiva. O PGR fundamenta seu pedido não apenas no fato já exposto de que a Constituição Federal assegura a liberdade religiosa, especialmente manifestada na liberdade de culto, mas também lembrando que a assistência espiritual é de fundamental importância para o enfrentamento do período calamitoso da pandemia.[16] Também o Advogado-geral da União André Mendonça fez semelhante pedido ao Supremo Tribunal Federal, valendo-se, inclusive, da proximidade da Páscoa, afirmando que “Para os mais de 2 bilhões de fiéis que professam a fé cristã no mundo, a Páscoa é talvez a celebração mais importante de todas, unindo todos os segmentos do cristianismo, como o catolicismo romano, a ortodoxia oriental e o protestantismo, nas suas mais variadas vertentes. No Brasil, país em que cerca de 80% da população é católica ou evangélica, mesmo descontando-se a parcela não praticante, a importância religiosa da efeméride é indiscutível para milhões de brasileiros”.[17]

Por fim, é importante direcionar um argumento comumente utilizado nessa mesma discussão: “não há necessidade de reunião em templos, uma vez que cada um pode exercer a sua fé dentro de sua própria casa”. Não bastando ser o substrato de uma lógica individualista oriundo do pensamento moderno, a utilização desse raciocínio como fundamento para uma decisão governamental que proíbe atividades religiosas coletivas é um atentado direto ao princípio da laicidade do Estado. Vale ressaltar que um Estado Laico não é aquele que extirpa qualquer influência ou prática religiosa, mas aquele que reconhece a importância da religião como parte integrante do próprio princípio da dignidade da pessoa humana e a protege contra ataques, muito embora não adote uma religião oficial.[18] Ao não adotar uma religião oficial, o Estado também se priva de disciplinar qualquer matéria de ordem religiosa, isto é, o Estado não possui a prerrogativa de definir doutrinas ou dogmas de qualquer religião.

É curioso notar a repercussão polêmica da decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que proibiu a organização “Católicas pelo Direito de Decidir” de utilizar o nome “Católicas”, uma vez que isso contraria os dogmas da Igreja Católica Apostólica Romana. Maíra Fernandes, comentando contrariamente a essa decisão, afirmou que “Não cabe aos magistrados decidir o grau de religiosidade de alguém, de um grupo de pessoas ou de uma organização. Tampouco pode afirmar, como intérprete da fé, que há “injusta, evidente e notória agressão aos claros valores” de determinada Igreja, pois a compreensão sobre quais são esses valores já é, por si, uma profissão de fé e de interpretação de seus testamentos.”[19] Em que pese minha oposição aos ideais da ONG em questão, é necessário que haja um único peso para todas as medidas. Da mesma forma que se argumenta nesse caso que o Estado não é competente para julgar matérias de fé, deve-se afirmar que o Estado não é competente para dizer à população como ela deve prestar seu culto.

Foi sobre essas bases que a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), valendo-se da Constituição Federal e outros dispositivos legais, fez pedido ao Supremo Tribunal Federal, in verbis: “A procedência do pedido, para que seja declarada a incompatibilidade, face ao texto constitucional, do art. 6º, do Decreto n. 031/2020, do Município de João Monlevade/MG, e dos demais dispositivos presentes em outros Decretos Estaduais e Municipais que determinem suspensão/vedação/proibição das atividades religiosas e do funcionamento dos templos religiosos sem qualquer ressalva sobre a possibilidade de realização de práticas religiosas que não geram aglomeração, ante as violações à liberdade religiosa e ao Estado laico.”[20] O qual foi atendido no dia 03 de Abril (sábado) pelo Ministro Kassio Nunes, que observou: “Reconheço que o momento é de cautela, ante o contexto pandêmico que vivenciamos. Ainda assim, e justamente por vivermos em momentos tão difíceis, mais se faz necessário reconhecer a essencialidade da atividade religiosa, responsável, entre outras funções, por conferir acolhimento e conforto espiritual”.[21] Além disso, reforçou que “A lei, decreto ou qualquer estatuto que, a pretexto de poder de polícia sanitária, elimina o direito de realizar cultos (presenciais ou não), toca diretamente no disposto na garantia constitucional”.[22] Ainda assim, o Ministro Gilmar Mendes entendeu em sentido contrário, fazendo com que o tema venha a ser decidido pelo plenário do Supremo.[23]

Se em casa, sozinho, ou reunido em um templo com sua comunidade de fé, cabe à Igreja ou a qualquer outra instituição religiosa decidir, e não ao governo. A Igreja Presbiteriana do Brasil, por exemplo, disciplina no Art. 7º de seus Princípios de Liturgia que “O culto público é um ato religioso, através do qual o povo de Deus adora o Senhor, entrando em comunhão com Ele, fazendo-lhe confissão de pecados e buscando, pela mediação de Jesus Cristo, o perdão, a santificação da vida e o crescimento espiritual. É ocasião oportuna para proclamação da mensagem redentora do Evangelho de Cristo e para doutrinação e congraçamento dos crentes.”[24] Seria legítimo que qualquer governante definisse que a IPB deva crer de forma diferente? Segundo toda a legislação já revista no decorrer desse texto, a resposta é um retumbante “não!”. A liberdade de culto é um direito fundamental, análogo à dignidade da pessoa humana, e que deve ser respeitado nos termos em que foi pensado para ser; do contrário, o próprio Estado Democrático de Direito, tão estimado pelos partidários das proibições, terá suas estruturas comprometidas. Ecoando as palavras de Abraham Kuyper: “em caso de conflito, as autoridades sanitárias não devem deixar a alma sofrer em prol do corpo; […] por essa razão, eles devem deixar suas mãos longe de nossos corpos, nossas igrejas e nossa consciência.”[25]

Referências:

  • [2] Doria cria fase emergencial, proíbe cultos, futebol e antecipa recesso escolar. Publicado na CNN Brasil em 11/03/2021.
  • [3] Ibid.

Publicado por Carlos Roberto Parra


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Um comentário em “A ilegitimidade da restrição às atividades religiosas coletivas

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  1. Tenho certeza que o autor desse texto não perdeu um ente querido pelo vírus, eu ,infelizmente, não tive a mesma sorte. Então peço a ele que ore no conforto e segurança de seu lar pelo meu vôzinho. Não aglomerem!!! Com o mesmo pensamento do autor, ele continuou indo aos cultos, não adiantou me ouvir dizendo que Deus está presente no coração de cada um de nós.

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