Por Ana Clara P.S.M.O.
Já imaginou um mundo em que as mulheres são submissas aos homens, não podem ler, escrever, falar sem permissão e devem manter a cabeça baixa? São proibidas de trabalhar, de ter qualquer bem e de andar nas ruas sozinhas? Um mundo no qual procriar e cuidar da casa é considerado seu dever?
Este é o mundo de Offred, a personagem principal do romance distópico de Margaret Atwood, no qual, após a destruição do meio ambiente pelos homens – outra questão extremamente alarmante e atual -, a radiação decorrente da degradação ambiental afeta a saúde dos seres humanos, inclusive a fertilidade.
Em decorrência de uma significativa queda de natalidade no país e, em uma tentativa de reverter a situação e estimular o crescimento da população, um grupo conservador toma o poder de forma a instaurar uma ditadura teocrática opressiva e baseada, especialmente, na desigualdade de gênero, dando origem à nova uma nação chamada Gilead. Dentre outras questões, como a perseguição a determinadas pessoas (a comunidade LGBT, pessoas adúlteras, e outros grupos que são considerados transgressores aos olhos da nova lei), o livro tem como foco a questão da opressão sofrida pelas mulheres.
Escrita em 1985, a obra recebeu uma adaptação audiovisual em 2017 pela Hulu, que hoje conta com 3 temporadas e já foi renovada para a quarta. Premiada em diversas categorias, a produção da série trouxe uma maior profundidade para os personagens e universo de Atwood, e teve êxito em abordar em maior detalhes a reorganização da estrutura social e a questão política, trazendo novas questões como a situação dos refugiados.
Na série, é possível observar como as mudanças são feitas gradualmente. Através de mudanças legislativas, a princípio sutis, o posterior fechamento do país e a repressão da população, em pouco tempo as mulheres se viram separadas de seus filhos e companheiros, designadas a funções como governantas, cozinheiras (funções tipicamente associadas ao feminino) e aias – mulheres férteis que são alocadas na casa dos comandantes do Governo para cumprir seu “dever” de procriação, gerando filhos para os membros da elite.
Um dos méritos do livro – e de sua adaptação – é o fato de ser baseado em uma religião fictícia. No universo e modelo de Governo criado pela autora, fica evidente mais do que uma dualidade, uma multiplicidade de leituras e pensamentos sobre uma mesma frase, ou palavra. Isso se relaciona diretamente não apenas com as diversas religiões do mundo, mas com a interpretação sobre qualquer texto, inclusive, da própria lei, uma reflexão sociológica e jurídica que vale a pena ser feita.
A relevância social e atualidade da obra, ainda nos dias de hoje, se justifica pela normalização da violência contra a mulher em pleno ano de 2020, a exemplo do que o Brasil viu acontecer com o caso Mari Ferrer recentemente – especialmente ao tratamento conferido durante a audiência, sua posição e vulnerabilidade em uma sala preenchida por homens que insistiam em reprimi-la e julgá-la -, bem como a recente onda de retrocesso em diversas matérias sociais, um passo assustador nesta direção.
Justamente por se tratar de uma ficção especulativa – ou seja, uma ficção que, nas palavras da autora, poderia acontecer de verdade -, “O Conto da Aia” foi escrito a partir de muitas pesquisas e do contexto social da época. Segundo uma reportagem da BBC, a autora se baseou em acontecimentos como o aumento do televangelismo (que inspirou sua contraditória personagem Serena Joy) e a política adotada por Reagan, até questões bastante específicas como a tentativa de Nicolai Ceausescu de aumentar as taxas de natalidade na Romênia a partir da proibição do aborto e uso de anticoncepcionais, e o fato ocorrido na Argentina, onde mais de 500 crianças desaparecidas após o golpe militar de 1976 acabaram nas mãos de líderes do governo.
Talvez o sucesso e atualidade da obra estejam também relacionados à antiga frase de Karl Marx de que a história se repete, mas dessa vez, ao invés de ser na forma de piada, é como um alerta, assustando com sua aproximação da realidade e suas sombrias possibilidades.
A obra, apesar de ter sido escrita há mais de 30 anos, é um alerta sobre o futuro. Vale a pena ser consumida, seja o livro ou sua adaptação – no Brasil, as três primeiras temporadas da série estão disponíveis na Globoplay.
Nolite te bastardes carborundorum
Publicado por Ana Clara P.S.M.O.
Fontes:
- O conto da Aia (The Handmaid’s Tale, Editora Rocco, 1985).
- O conto da Aia (The Handmaid’s Tale, 2017)
- “Série premiada The Handmaid’s Tale é renovada para a quarta temporada”. Publicado pela Folha, em 27 de julho de 2019.
- “Por que a série The Handmaid’s Tale é relevante para os dias de hoje”. Publicado pela BBC News, em 16 de fevereiro de 2019.
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