Rememorar para abominar: 28 anos de um massacre.

Por Leonardo Mariz

O que é viver em uma democracia? Esta é uma pergunta da qual pode derivar diversas respostas, porém, mesmo em meio a essa pluralidade de resultados, é inimaginável que uma delas declare que viver em uma democracia consiste em conviver com massacres e violações de direitos mínimos que deveriam ser garantidos a todos.

Porém, a realidade da democracia brasileira traz resultado diverso. Nela, pessoas são obrigadas a conviver não só com a violação a diversos de seus direitos, mas também têm de enfrentar a verdadeira banalização de diversas violências, muitas delas provocadas pelo Estado.

Hoje, dia 2 de outubro de 2020, um dos vários massacres que aconteceram após a redemocratização completa 28 anos: o Massacre do Carandiru. Por isso é importante relembrar esse episódio, visto que marcou a nossa história negativamente, pois, detestável é o acontecimento, mas, se ocorreu, o esquecimento é mais detestável ainda.

Sobre isso, o cientista social Michael Pollak afirma que a memória da sociedade é útil à manutenção da coesão dos grupos e das instituições que a compõem, de maneira a fornecer pontos de referência que definem as fronteiras do que é ou não aceitável.¹

Dessa forma, é por meio disso que se pode afirmar que o esquecimento das chacinas que acontecem no Brasil é fator que contribui para a repetição das diversas violências, haja vista que a ausência de referência ao passado traz consigo a não limitação das instituições.

A partir disso, questiona-se: o esquecimento social das diversas chacinas permite que instituições como a Polícia Militar possa, em determinadas situações, de tempos em tempos, usar excessivamente sua força?

Trata-se de tema polêmico e a resposta cabe ao leitor, porém, é incontroverso que hoje rememoramos o dia em que 111 pessoas foram mortas em uma ação da Polícia Militar do Estado de São Paulo, número que, se observado de forma abstrata, pode não causar espanto, mas pense em 2 pessoas que você conhece sendo alvejadas por agentes de polícia. Imagem dolorosa, não é mesmo?

Desse questionamento podem surgir críticas no sentido de que no Carandiru não havia “cidadãos de bem”, mas, o que o termo significa? Além disso, a Constituição diz que todos são iguais perante a lei; à época não havia pena de morte no Brasil; há pesquisas que mostram o número de pessoas presas que posteriormente são inocentadas; muitos presos não foram condenados; e, este argumento em favor do massacre confirma a tese de que há, na nossa sociedade, raciocínio no sentido de banalizar mortes de seres humanos, principalmente quando se trata de um grupo de pessoas com recorte social bastante específico, como no caso do sistema carcerário.

Ademais, sobre a memória desse massacre, há narrativas diversas: a narrativa institucional e a narrativa não institucional. A primeira é aquela construída pelo Poder Judiciário, e todos os demais atores jurídicos, nos autos do processo, que culminou na absolvição do Coronel Ubiratan Guimarães – responsável por determinar a invasão da Casa de Detenção -, pela Corte Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo por 20 votos a 2, após a apelação sobre a decisão do Tribunal de Júri que havia condenado o Coronel a 632 anos de prisão, por 102 homicídios e 5 tentativas de homicídio.

Outro ponto relevante é o fato de que a condenação dos policiais envolvidos no massacre foi anulada, em setembro de 2016, por desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo. Neste caso, o Desembargador Ivan Sartori, homenageado pela Polícia Militar com cinco medalhas por ser grande defensor da corporação² e Relator do caso, decidiu pela absolvição de todos os agentes.

Dessa maneira, é possível observar que a narrativa institucional não reconheceu o Massacre do Carandiru como um episódio deplorável da nossa história, haja vista que nenhuma resposta, no sentido de expressar que não aceitaremos isso novamente, foi dada ao caso.

Porém, além da primeira, há também a segunda narrativa, não institucional, construída por filmes³, músicas4, peças teatrais5, fotografias6, livros7, pesquisas científicas8 e relatos das testemunhas, por meio das quais podemos questionar a forma pela qual as informações foram inseridas e analisadas no processo.

Através de todos os materiais produzidos fora do aparato estatal, foi possível criar consenso acerca do que foi o episódio, ou seja, um massacre. Também é interessante a análise da segunda narrativa, pois diversos elementos, inclusive aspectos jurídicos, são questionados, fato que não pôde acontecer sob a tutela das instituições estatais, haja vista a existência de cooperação para acobertar e fazer desaparecer da memória social o episódio do dia 2 de outubro de 1992.

Portanto, é importante, além de entender o porquê massacres como esse acontecem, não causam revolta e, por não causar impacto negativo no imaginário popular, tendem a acontecer novamente, rememorar o absurdo que foi para, a partir disso, criar uma consciência coletiva capaz de rechaçar violências institucionais contra determinados grupos, pois, esse é um caminho viável a possibilitar a construção de uma alma coletiva9 que não banaliza a inobservância dos direitos mínimos da população, como saúde, educação, moradia e lazer, e o tão caro direito à vida.

NOTAS

[1] Michael Pollak. Memória, Esquecimento e silêncio. 7p. Disponível em: <http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf&gt;.

[2] Notícia disponível em: <https://www.tjsp.jus.br/Noticias/noticia?codigoNoticia=21155&gt;.

[3] Carandiru: o filme – Hector Babenco.

[4] Diário de um detento – Mano Brown e Jocenir; Terror no Carandiru – Fatos reais; Carandiru da morte – Pedro Anderson; Haiti – Caetano Veloso.

[5] Salmo 91 – Dib Carneiro e grupo teatral Teatro da Vertigem.

[6] Aqui dentro. Páginas de uma memória: Carandiru. Maureen Bisiliiat, Sophia Bisilliat, André Caramante e João Wainer.

[7] Estação Carandiru – Drauzio Varella; Diário de um detento – Jocenir; Sobrevivente André du Rap – André du Rap e Bruno Zeni; Memórias de um sobrevivente – Luiz Alberto Mendes; Vidas do Carandiru – Humberto Rodrigues.

[8] Maíra Machado e Marta Machado. Carandiru não é coisa do passado. Disponível em: <https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/carandiru-nao-e-coisa-do-passado_1.pdf&gt;.

[9] Jesús Martín Barbero. Dos meios às mediações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] BARBERO, Jesús Mantín. Dos meios às mediações.

[2] MACHADO, Maíra e MACHADO Marta. Carandiru não é coisa do passado.

[3] POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento e silêncio.


Siga o JP3!

Instagram: @jornalpredio3

Facebook: fb.com/jornalpredio3


Mais notícias e informações:


Jornal Prédio 3 – JP3 é o periódico on-line dos alunos e antigos alunos da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, organizado pelo Centro Acadêmico João Mendes Júnior e a Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito do Mackenzie (Alumni Direito Mackenzie). Participe, observe e absorva!

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Crie um site ou blog no WordPress.com

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: