Por Carlos Roberto Parra
Socorro
Não estou sentindo nada
Nem medo, nem calor, nem fogo
Não vai dar mais pra chorar
Nem pra rir
[…]
Qualquer coisa que se sinta
Tem tantos sentimentos
Deve ter algum que sirva
Qualquer coisa que se sinta
Tem tantos sentimentos
Deve ter algum que sirva
Em 1998, Arnaldo Antunes lançou a canção Socorro, da qual foi extraído o trecho que introduz este texto. A letra, do início ao fim, apresenta o pedido de socorro de alguém que já não sente – ou não sente que sente. É o pedido de alguém que já não encontra sentido em coisa alguma, ainda que o procure incessantemente. Os sentimentos estão em algum lugar, o sentido está em algum lugar, mas a personagem da canção não é capaz de encontrá-los. A letra é angustiante e envolvente. Há momentos em que é possível identificar-se com aquela pessoa desnorteada e torcer para que, em algum momento da letra, ela finalmente encontre sentido, sentimento, esperança.
Enquanto procurava a letra da música para poder copiar aqui no texto, fiz algo que nunca tinha feito até então: acessei um site chamado “Análise de Letras”. Eu esperava algum tipo de análise profunda, feita, talvez, por um especialista, ou ao menos por um grande apreciador de música, mas, para a minha surpresa, o site simplesmente apresentava a letra da música e uma sessão de comentários em que os próprios visitantes do site publicavam suas interpretações. Achei bastante curioso ver as diferentes reflexões. Houve quem falou de angústia, de depressão, de viuvez, de vício em cocaína e até mesmo em um manequim que deseja ser humano. Com exceção, talvez, do último exemplo, é perceptível o quanto nós, seres humanos, vivemos em busca de sentido. Depositamos nossa esperança de significado em relacionamentos, em drogas, em experiências, em pessoas, em toda e qualquer coisa que possamos imaginar. Somos como náufragos de um grande navio que, no afã de nos salvarmos, nos seguramos em qualquer pedaço de madeira que boia ao nosso lado. Como Jack e Rose dividindo aquela porta, lutamos contra o afogamento no mar da angústia nos apegando a tábuas flutuantes. Tábuas que sofrem de infiltração e logo se partem. Tábuas efêmeras. Mas por quê?
C. S. Lewis, autor da saga As Crônicas de Nárnia, disse que todo desejo existe em razão de um objeto desejado. Sentimos fome porque existe algo chamado alimento, sentimos sono porque existe algo chamado dormir, sentimos falta de sentido, portanto, porque existe algo chamado sentido. Pensemos apenas na palavra “sentido” por enquanto. O que é sentido? O que você entende quando alguém te pergunta “em que sentido está a sala X?” ou quando alguém te diz “vire sentido à esquerda para chegar lá”? Um sentido é uma direção, um caminho, um fim. A busca humana por sentido é uma busca por direção, por um fim. Mais do que “por que estou aqui?”, a pessoa sedenta por sentido pergunta “para que estou aqui?”. A busca por sentido é uma busca por propósito, não no sentido “coach” da coisa, não como um simples alvo de carreira ou uma conquista pessoal, mas o propósito como o fim último da existência. Qual é o seu propósito?
O espírito de nossa época responderia um grande “depende”. Você, diria alguém na pós-modernidade, é quem faz o seu próprio sentido. “Tudo depende de você!”, grita o humanista do alto de seu antropocentrismo. Tamanho fardo é colocado sobre nossas costas e anunciado como uma grande conquista. Douramos a pílula do veneno que nos mata. Lembro-me de uma aula do meu primeiro semestre em que a professora perguntou aos alunos qual era o sentido da vida. “O sentido da vida é encontrar um sentido pra vida”, respondi eu. Eu poderia agora inventar toda uma construção para sustentar essa resposta e fazer parecer que eu sou uma espécie de grande sábio, mas aquela foi uma resposta irrefletida. Uma resposta irrefletida que agora me ponho a refletir. Quão penosa é a missão de encontrar sentido sem qualquer referencial. Imagine-se deixado por um helicóptero no meio de uma estrada desconhecida. Existe um longo caminho para trás de você e à sua frente, algumas bifurcações, subidas, descidas, mas nenhuma placa. Como saber para onde ir? Todos os caminhos são caminhos para algum lugar, mas como saber para onde? Todo caminho é o certo quando não se sabe onde quer chegar. Assim é a ideia de ter como sentido da vida o encontrar um sentido para a vida. E é assim que muitos de nós vivemos.
Considere a situação de alguém que, largado na estrada da vida, seguiu o caminho da realização profissional. Essa pessoa alcançou tudo que poderia alcançar em sua carreira, destacou-se em tudo que poderia dentro de sua área de atuação. E depois? Alcançados os objetivos, que sentido resta? Talvez essa pessoa retorne ao seu ponto de origem naquela estrada e tente seguir pelo outro lado da bifurcação porque descobriu que pegara um caminho sem saída, mas, no fim, todos o são. Há um episódio em Friends que, talvez sem querer, fala bastante sobre isso. Mônica conhece um bilionário na lanchonete em que trabalhava e, após idas e vindas, acabam começando a namorar. O rapaz conquistou tudo o que poderia conquistar no ramo da computação, mas não se via satisfeito com todo o império que construíra. Ele então decide se aventurar pelo mundo do MMA. Não é preciso dizer que ele, literalmente, quebrou a cara. E é assim que muitos de nós vivemos. Vamos depositando toda a nossa esperança por sentido em coisas que são passageiras e, mesmo as tendo conquistado, pulando de galho em galho porque nenhum deles é firme o suficiente para nos sustentar durante toda a vida.
Talvez você tenha se identificado bastante até aqui, talvez esteja considerando esse texto um amontoado de más notícias ou, talvez, esteja se perguntando “ok, mas ele não vai falar o porquê?”. Não há muito o que eu possa fazer quanto aos dois primeiros “talvez”, mas, sim, há uma razão para nossa incessante busca por sentido. A resposta, em um primeiro momento, pode parecer simplista, mas não é. Nós buscamos incessantemente por sentido porque fomos criados com um sentido. Sim, somos essencialmente seres dotados de sentido. Se fôssemos mero resultado de um acidente cósmico, frutos de uma combinação aleatória de elementos químicos, matéria acumulada e nada mais, não teríamos qualquer sentido senão continuar vivos e fazer o que quisermos, afinal vamos morrer de qualquer jeito e é isto. Mas fomos criados com um sentido. Agostinho de Hipona, em suas Confissões, descreve nossa condição de maneira poética e precisa: “criaste-me, Senhor, para Ti, e meu coração não terá descanso enquanto não estiver em Ti”. Não fomos simplesmente criados por alguém. Do contrário, poderíamos facilmente comprar a ideia deísta de um relojoeiro que dá corda e deixa o mecanismo funcionar por si só. Mas fomos criados também para esse mesmo Alguém. O início e o fim da nossa existência, a arché e o telos, se encontram em um mesmo ponto: Deus. Já afirmavam os membros da Assembleia de Westminster: o fim último do ser humano é glorificar a Deus e deleitar-se nEle. O ser humano foi criado bom, finito, naturalmente insuficiente, mas bom. E nesse estado de bondade era capaz de relacionar-se com Deus e contemplá-lo face-a-face. Mas algo aconteceu que mudou tudo isso.
O homem pecou e, em sua rebelião, teve sua comunhão com Deus rompida. A partir desse momento, a insuficiência do homem foi acrescida de miséria. Miséria porque não mais era uma boa criação que encontrava em Seu Criador o suprimento de sua insuficiência, mas uma criação rebelde que vira as costas para o Criador e busca, por si mesma, aquilo que há de preencher o vazio de sua insuficiência. Retomando o exemplo de C.S. Lewis, se há um sentido que buscamos, mas este não pode ser encontrado em lugar algum no mundo, só pode ser que este está além desse mundo. Temos um desejo transcendente ardendo em nosso coração. Buscamos sentido porque, valendo-me da analogia que Jonas Madureira faz, somos como um homem-flecha, um miserável homem-flecha, que foi atirado pelo arco de Deus em direção de Si mesmo, mas teve seu rumo alterado pelo pecado e hoje vaga errante em busca de encontrar seu sentido original. Nossa busca não é por um sentido, mas pelo sentido. O único sentido possível. Nas palavras do grande escritor russo, Dostoiévski: no ser humano há um vazio do tamanho exato de Deus. E como diz meu melhor amigo, aquilo que não é do tamanho exato fica chacoalhando, porque não cabe, e esse chacoalhar dói.
A raiz de nossa angústia é também a razão de nossa esperança: somos criaturas teorreferentes*, isto é, tudo o que fazemos é em referência a Deus, seja em direção (após) ou contrariamente. A presença de Deus é o ambiente em que o homem vive. Coram Deo. Essa presença de Deus é em amor, controlando a verdade e reinando soberanamente sobre a criação. Na Queda, entretanto, a humanidade reverteu, inverteu e se rebelou contra essa condição. Revertemos o controle, nos tornando controladores de nossa própria verdade, invertemos o amor, buscando a aprovação de outras pessoas, colocando-as como deuses sobre nossas vidas, e nos rebelamos contra a soberania de Deus, buscando nós mesmos dominarmos sobre os outros. Nessa condição caída, guiando-nos por uma pretensa autonomia, vivemos em profunda angústia, pois vivemos uma mentira, tomados pela poeira de morte. Vaidade de vaidade, tudo é vaidade. A nossa própria verdade é vaidade, a aprovação alheia é vaidade, o domínio sobre o outro é vaidade. E entenda-se, por vaidade, “sopro”. Vaidade é o vapor que sai de nossa boca quando falamos em dias frios. É algo que aparece, mas logo fenece sem que possamos fazer qualquer coisa a respeito.
Tudo aquilo que buscamos no mundo para suprir o vazio que nos angustia é vaidade e logo desaparece, por isso a busca por sentido nunca cessa. Não cessa senão se resultante no único que se encaixa no vácuo deixado pelo pecado. A narrativa da história não acaba na Queda, mas encontra em Jesus Cristo a Redenção. É através da obra redentiva do Messias que recebemos espírito de adoção e, em unidade, carregamos a cruz junto aos nossos irmãos, vivendo uma nova vida em Cristo. A Redenção, aplicada e consumada, é o ato final da história. A angústia por sentido já não mais nos aflige, pois podemos, enfim, repetir a resposta à primeira pergunta do Catecismo de Heidelberg: “O meu único fundamento é meu fiel Salvador Jesus Cristo. A Ele pertenço, em corpo e alma, na vida e na morte, e não pertenço a mim mesmo. Com seu precioso sangue Ele pagou por todos os meus pecados e me libertou de todo o domínio do diabo. Agora Ele me protege de tal maneira que, sem a vontade do meu Pai do céu, não perderei nem um fio de cabelo. Além disto, tudo coopera para o meu bem. Por isso, pelo Espírito Santo, Ele também me garante a vida eterna e me torna disposto a viver para Ele, daqui em diante, de todo o coração.”
[*] Termo cunhado por Davi Charles Gomes, também trabalhado por Wadislau Martins Gomes, seu pai, para descrever o fato de que a soberania de Deus requer que tudo exista e seja mantido por Deus; esse sentido, a natureza e a existência do ser humano, seja em aproximação, seja em oposição, encontram seu ponto de contato em Deus. O conceito de teorreferência inclui o de centramento e de baseamento em Deus. (Coração e Sexualidade, W.M.G.)
Publicado por Carlos Roberto Parra
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MUITO BOM!!!
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Olha que eu estou virando a sua fã! Achei sensacional a sua comparação de uma vida sem Jesus e uma vida com Jesus, porque no final das contas, sem Ele não há sentido algum!!!
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Super interessante seu artigo, parabens! também me interesso sobre existencialismo, pela busca sobre o sentido da vida. Acredito ter encontrado a resposta definitiva com base na Teoria do Infinito Bilateral que rechaça a Teoria do Big Bang, explico melhor em meu artigo: https://davipinheiro.com/qual-o-sentido-da-vida/
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