“Apesar de tudo, Amor” e o pano de fundo dos relacionamentos tóxicos

por Fernanda Aparecida Lopes Balthazar

Contemporaneamente, a pauta sobre relacionamentos tóxicos está cada vez mais em evidência – tema esse que deve ser, de fato, cuidadosa e profundamente estudado, haja vista que é uma infeliz realidade para muitas pessoas. A abusividade pode se manifestar em qualquer forma de relacionamento, seja hétero ou homoafetiva, em razão do impacto da cultura machista e patriarcal na qual todos estão inseridos. De modo a identificar um relacionamento não saudável, contudo, nem sempre os sinais são claros, pois embora envolva a tentativa de uma pessoa manipular, controlar e isolar a outra, não há um padrão propriamente dito – nesse sentido,  a Dra. Fernanda Cristina Dias [1], em entrevista exclusiva ao Jornal Prédio 3, ressaltou:

Acho muito difícil falar em ‘sinais’, porque sempre dependerá de cada pessoa. De maneira geral, é importante perceber como a pessoa em questão se sente diante daquele/a que está se relacionando, se, por exemplo, comumente se coloca em uma posição de inferioridade ou se percebe sendo coagida por outra pessoa, se sente medo de se expressar, se faz coisas sem sua vontade para agradar aos interesses de outros/as, se muda seu comportamento diante de determinada pessoa etc. É importante uma análise profissional, de um psicólogo ou psicanalista, para entender se de fato se trata de um relacionamento tóxico/abusivo ou de algum outro sofrimento que esteja sendo percebido como tal, como no caso de ideias delirantes de perseguição, por exemplo.

De maneira geral, mulheres jovens representam a grande maioria das vítimas de relacionamentos tóxicos, nos quais, muitas vezes, a violência psicológica predomina. Contudo, o patriarcalismo estrutural as impede desse entendimento, pois existe a naturalização de atitudes que deveriam ser inaceitáveis, conforme pode ser observado, a título de verossimilhança, no decorrer dos episódios do drama sul-coreano a ser aqui analisado. Aqui, cumpre destacar, inclusive, que é cada vez mais perceptível o fato de que diversas produções artísticas, principalmente as televisivas, distorcem o modo pelo qual as pessoas enxergam o amor, surgindo a ideia de que se traduz como sinônimo de sofrimento ou dor – emocional e, às vezes, até mesmo física –, de modo que as obras românticas passaram a ser marcadas por enredos angustiantes e opressores, ensejando o recorrente fenômeno da romantização – que consiste em uma “forma de ‘normalizar’ as diversas violências cometidas na sociedade”, sendo uma delas, por exemplo, “mulheres que fazem de tudo por seus companheiros mesmo que esse ‘tudo’ signifique colocar-se em uma situação de inferioridade, porque é isso que se espera delas (romantização do casamento)”, conforme aponta a Dra. Fernanda Dias  – de relações tóxicas. Nota-se, ainda, que esse conteúdo é consumido, sobretudo, pelo público adolescente, que ao considerar determinado casal retratado no meio midiático como ideal romântico, pode, muitas vezes, se utilizar dessa referência na realidade, reforçando “um padrão social em que as diversas violências são aceitas, normalizando o que é abusivo. Desta forma, se não fizermos uma análise crítica destas situações, podemos perpetuar esta inércia cultural do abuso”, diz a especialista supramencionada.

Em “Apesar de tudo, Amor”, uma produção dramática sul-coreana (k-drama), os espectadores acompanham a jornada de dois jovens universitários com especialização em arte. Jae-eon Park é apresentado como uma pessoa cética quanto ao amor, preferindo relações casuais ao invés de um relacionamento romântico – em certa ocasião, Na-bi Yoo passa a desenvolver sentimentos por ele, o qual, inesperadamente, demonstra retribuí-los. Todavia, conquanto a proposta do enredo seja o desenrolar de uma história leve e divertida, as diversas idas e vindas do casal se mostram progressivamente nocivas, como será a seguir discorrido.

“O charme irresistível de um colega da turma do departamento de artes leva Na-bi, uma jovem que não acredita no amor, a entrar em uma amizade colorida” – a sinopse fornecida pela plataforma de streaming Netflix indica o primeiro ponto a ser abordado. Comumente, o agressor se utiliza da sedução para reduzir as defesas pessoais da vítima e ganhar sua confiança, de modo que, normalmente, no começo, o relacionamento parece ser perfeito – de fato, Na-bi é cegamente seduzida pelo “charme irresistível” de Jae-eon, mantendo-se na relação em virtude dos momentos em que era tratada de forma especial, ainda que estivesse ciente acerca dos demais envolvimentos do protagonista. Outro ponto a ser destacado é que, em determinado momento, Na-bi decidiu se distanciar de Jae-eon devido a atitudes imaturas por ele cometidas – entretanto, descontente em razão desse afastamento, o protagonista deixou de falar com Na-bi por dias, o que a levou a se sentir culpada, ainda que tenha se distanciado para preservar seu bem-estar.

No decurso dos episódios, é perceptível o deterioramento da condição psicológica da protagonista. Os espectadores presenciam o definhamento da personagem na medida em que a paixão a sufoca, ensejando o agravamento da dor emocional e dos sentimentos de exaustão e solidão – um relacionamento tóxico traz muito mais estresse do que felicidade, sendo acompanhado de diversos sentimentos negativos, como a insegurança e a sensação de esgotamento.

Ademais, cumpre salientar como a metáfora das borboletas revela, na verdade, o ciclo de manipulação emocional e necessidade de controle fortemente presente na relação do par romântico. Jae-eon manifesta uma grande paixão por borboletas, incumbindo-se de cuidar, inclusive, de um criadouro com diversas espécies do referido inseto – ele expõe que as borboletas são facilmente manipuladas, pois não têm consciência de que há um mundo “além da janela”. Posteriormente, entende-se que as verdadeiras borboletas de Jae-eon são, na realidade, as mulheres com as quais mantém relações casuais – ele as prende com a promessa de que receberão tratamento e proteção adequados, compromisso esse que era esperado por Na-bi (ironicamente, Nabi significa “borboleta” em coreano). Uma vez que o parceiro tóxico manipula emocionalmente o seu cônjuge, este acaba se tornando, do mesmo modo, emocionalmente dependente dele – nesse sentido, denota-se que a protagonista acredita que não consegue viver se não estiver ao lado de Jae-eon, tampouco enxergar-se em uma outra relação. É notório que, embora tenha consciência de que não está feliz na relação, Na-bi não consegue sair dela – está em uma prisão, assim como as borboletas no criadouro.

Diante disto, assimila-se que o k-drama se utiliza da narrativa de que o protagonista é cético quanto ao amor com o objetivo único de tentar justificar o seu comportamento, embasado em um ciclo de abusos, haja vista, inclusive, que Jae-eon afirma estar apaixonado por Na Bi e, por isso, disposto a mudar sua conduta, mas continua se envolvendo com outras mulheres. À vista disso, a Dra. Fernanda Dias assenta que essa violência psicológica, por não deixar marcas visíveis no corpo, pode ser profundamente angustiante e funcionar como uma espécie de tortura psicológica, levando ao que se chama, na psicanálise, de uma relação de amor tantalizante:

Esse termo foi desenvolvido pelo psicanalista David Zimmerman. Aquele que “tantaliza” é aquele que causa uma espécie de tormento, criando no outro o desejo de possuir um determinado objeto (relação). Pode ocorrer em diversos tipos de relações: pais e filhos, conjugais, ou outros tipos de parcerias. Em alguns casos atendidos em consultório, pude perceber que o/a analisante trazia a idealização de uma relação amorosa que na verdade não era real, mostrando-se mais como um sintoma do que como a realização de uma relação satisfatória. Isto porque, além de muito conflituosa, geralmente é uma relação em que a pessoa se coloca em uma posição de desvalorização e esvaziamento porque acredita que só́ assim terá́ a certeza de um vínculo de amor com o outro (uma espécie de barganha), que nunca se concretiza na verdade, porque aquele que “tantaliza”, prende o outro numa espécie de falsa esperança: “se você̂ fizer o que eu quero, me terá́ por inteiro”. Na verdade, o que ocorre ao longo do tempo é um esvaziamento cada vez maior da pessoa que sofre o abuso, que se vê̂ em um ciclo infindável, na esperança de finalmente conseguir o que precisa do outro: uma relação amorosa.

Ante o exposto, nota-se que é imprescindível se informar, vez que muitas pessoas normalizam relacionamentos não saudáveis, principalmente quando possuem crenças ruins sobre relacionamentos e visões distorcidas sobre o significado de amor, sendo a ajuda profissional de extrema importância no processo de descoberta sobre o que é um relacionamento aceitável e, dependendo do caso, é fundamental procurar o apoio de instituições e órgãos governamentais e da justiça para relatar o ocorrido, a fim de que o agressor seja conscientizado de suas ações, conforme aponta a Dra. Fernanda Dias. Conquanto o título da produção aqui analisada induza o espectador a acreditar que, apesar de todas as adversidades existentes em uma relação, o amor prevalece, perceba que certas atitudes são inaceitáveis – atente-se às borboletas.

Publicado por Fernanda Aparecida Lopes Balthazar


Seu relacionamento tem mais momentos felizes ou tristes? Você sente que se doa muito mais do que recebe? É comum o sentimento de culpa? Admitir que se encontra em um relacionamento abusivo é o primeiro passo. Caso sinta necessário, um teste básico (clique aqui) foi criado pela Revista CLAUDIA para ajudar nessa autoavaliação. Procure ajuda profissional.

Caso você ou outra conhecida estiver precisando de ajuda, ligue para o 180, Central de Atendimento à Mulher.


[1] Fernanda Cristina Dias é psicóloga, psicanalista, especialista em Psicopatologia e Saúde Pública pela Universidade de São Paulo e Mestra em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Link do Lattes: http://lattes.cnpq.br/5794208851162855 / E-mail: contato@fernandacristinadias.com.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Série “Apesar de tudo, Amor”. Disponibilizada na Netflix, a partir de 7 de outubro de 2021.

“A romantização de relacionamentos abusivos na indústria cultural”. Publicado em Fala Universidades, em 10 de maio de 2021.

“Os sinais de um relacionamento tóxico”. Publicado no INPA.

“Relacionamento abusivo: o que é, como identificar, quais os sinais e, principalmente, como sair de um”. Publicado em GLAMOUR, atualizado em 14 de julho de 2021.

“Relacionamento tóxico: conheça os sinais”. Publicado em eCycle.

“Saiba o que é e descubra os sinais de um relacionamento tóxico”. Publicado em Dicas de Mulher, atualizado em 2 de agosto de 2021.

“Teste: estou em um relacionamento tóxico?”. Publicado em Mundo Psicólogos, em 15 de outubro de 2020. 

“9 sinais de que você está em um relacionamento abusivo”. Publicado em CLAUDIA, atualizado em 21 de janeiro de 2020.


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