Por Fernanda Aparecida Lopes Balthazar
Centenas de jogadores falidos aceitam um estranho convite para um jogo de sobrevivência. Um prêmio milionário aguarda, mas as apostas são altas e mortais. (Netflix)
Desde a sua data de lançamento na Netflix, a série sul-coreana Squid Game (conhecida como Round 6 no Brasil) emplaca o primeiro lugar do ranking de conteúdos mais assistidos na plataforma de streaming.
Em um primeiro momento, Gi-hun Seong, o personagem principal da trama, é apresentado aos espectadores: um homem de 47 anos, divorciado e privado de ver sua filha, viciado em jogos de azar, falido e deveras endividado. Desesperado e almejando uma vida melhor, ele aceita o convite para participar de um jogo misterioso com a promessa de ganhar dinheiro fácil, mas, após defrontar a primeira rodada, Gi-hun percebe que não se trata de brincadeiras simples e inofensivas – dentre os 456 jogadores, o único sobrevivente conquista o valor integral do prêmio, de modo que, na corrida rumo à vitória, uma série de eventos desencadeiam um verdadeiro show de horrores.
No decorrer dos episódios, há diversos pontos passíveis de questionamento pelos espectadores, tais como a violência impetrada aos jogadores e a impunidade dos organizadores de tal carnificina, além da forma pela qual Gi-hun quitaria as dívidas contraídas com agiotas, caso não obtivesse dinheiro suficiente para tanto – ele assinou, forçosamente, um contrato de renúncia à integridade física, comprometendo-se, assim, a ceder alguns de seus órgãos para saldar o débito. Em vista disto, é patente a violação de direitos inerentes à pessoa humana na obra aqui abordada, dentre os quais, evidentemente, o direito à integridade física.
Nesta toada, cabe, a princípio, elucidar o conceito de direitos fundamentais e suas características. Com a concepção da Constituição Federal de 1988, inaugura-se uma nova fase de efetiva criação de respeito aos direitos fundamentais pelo Estado e pela sociedade brasileira – direitos esses que, de acordo com Ingo Wolfgang Sarlet, consistem em prerrogativas, faculdades e instituições reconhecidas e positivadas no direito constitucional de determinado Estado, em geral atribuídas à pessoa humana. A doutrina majoritária brasileira entende que um dos atributos atinentes a tais direitos é a indisponibilidade, ou irrenunciabilidade, defendendo a posição de que, conforme aponta José Afonso da Silva, “não se renunciam direitos fundamentais. Alguns deles podem até não ser exercidos, pode-se deixar de exercê-los, mas não se admite que sejam renunciados”, de modo a enfatizar a necessidade de proteção dos direitos fundamentais, inclusive contra os seus titulares. Em contrapartida, há doutrinadores que atribuem outro entendimento à referida característica, alegando que existe a possibilidade de restrições à autonomia – ou seja, em alguma medida, todo direito fundamental detém uma certa restrição à sua disponibilidade ou renúncia –, porém, uma vez vigente a capacidade das partes, assenta-se que é possível a renúncia aos direitos fundamentais, salientando a liberdade e autonomia dos titulares desses direitos – posição esta defendida, dentre outros, por Walter Claudius Rothemburg, que reiterou:
Com efeito, os titulares nem sempre podem abrir mão de seus direitos fundamentais ou fazê-lo em certa medida. Conquanto a autonomia, o direito de o ser humano determinar-se de acordo com sua vontade, seja um dos mais relevantes aspectos dos direitos fundamentais (ligado à dignidade e à liberdade), mesmo essa autonomia pode ser mitigada para proteger o sujeito de situações sociais opressivas e até de deliberações próprias degradantes (proteção da pessoa contra si mesma). Contudo, a disponibilidade dos direitos fundamentais é a regra, e a indisponibilidade é a exceção.
Contemporaneamente, há uma compreensão mais efetiva no que tange ao funcionamento e exegese dos direitos fundamentais, adotando-se a concepção de que eles são caracterizados por restrições à autonomia, e não por uma indisponibilidade plena – contudo, ressalte-se que é inconcebível a renúncia, ou disposição, de tais direitos em qualquer situação se violada a dignidade humana, a qual constitui um dos pilares do próprio Estado Democrático de Direito brasileiro (Art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988).
Cumpre consignar, por fim, que os direitos fundamentais tutelam, essencialmente, a integridade física, intelectual, psíquica e moral do indivíduo. Presente nos Arts. 5º, caput, III e XLIX, e 34, VII, ‘b’, da Constituição Federal de 1988, a proteção à integridade física, direito a ser aqui manifestado a fim de correlacioná-lo à cena ora descrita, equivale ao direito à integridade corporal do titular como um todo, seja ele vivo ou morto. Quanto à sua indisponibilidade, ou irrenunciabilidade, anote-se, por exemplo, que uma pessoa, se maior e capaz, e se quiser e puder realizar a doação de um rim, pode vir a permitir que haja uma redução de sua integridade física e corporal para tanto; entretanto, ante o exposto, é possível concluir que, independentemente do entendimento adotado, é inaceitável a situação à qual Gi-hun foi exposto, visto que, no contexto anteriormente retratado, se reduzida a integridade física do personagem, ainda que possa ser relativizada sob a perspectiva da autonomia, resultar-se-ia na degradação da pessoa humana dado o ambiente impositivo e torturante ao qual foi submetido, o que não se pode admitir à luz do disposto no ordenamento jurídico brasileiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
“A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional”, Ingo Wolfgang Sarlet (2015, Livraria do Advogado Editora).
“Curso de direito constitucional positivo”, José Afonso da Silva (2020, Editora Juspodivm, Malheiros Editores).
“Direitos Fundamentais”, Walter Claudius Rothenburg (2014, Método).
“Os limites da proteção do direito da integridade física”. Publicado no DomTotal, em 17 de outubro de 2018.
Série “Squid Game”. Disponibilizada na Netflix, a partir de 17 de setembro de 2021.
Publicado por Fernanda Aparecida Lopes Balthazar
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