por Letícia Juang
Tudo estava dando errado.
Incrivelmente tudo o que planejara deu meia-volta e foi para os ares em um piscar de olhos e Nathália estava ficando cada vez mais estressada. Não conseguia acreditar que voltar — finalmente — ao campus pelo qual era tão apaixonada fosse ser um pesadelo com tamanha projeção. Parecia até uma piada de mau gosto, uma pessoa que gostava tanto de manter tudo sob controle estar de mãos atadas e à mercê da sorte.
Era tudo o que a mackenzista de cabelos rebeldes conseguia pensar enquanto olhava para o relógio analógico em seu punho, aguardando o fim daquela (infinita) aula de direito civil. O problema não era a matéria. Mesmo que não exibisse a menor pretensão de se tornar uma civilista, ela tinha certa afeição pela matéria e realmente a achava interessante.
O problema era aquele dia ou sua má sorte.
Exatamente sete dias atrás, Nathália estava um bolinho animadamente ansioso. Ou pelo menos, foi assim que sua mãe a definiu quando vira a filha relendo seu planner, repleto de cactos metalizados e de cores distantes da realidade, pela décima quinta vez antes do jantar. As páginas meticulosamente preenchidas já continham todas as informações necessárias e também as desnecessárias para a quinta etapa do curso de Direito. A virginiana não queria nem pensar em alguma coisa saindo do planejado quando voltasse ao presencial. Já tinha passado tempo demais no tão odiado regime de EAD.
Ela precisava voltar a tomar sol e chuva no campus que ficava no centro de São Paulo, precisava descansar nos pufes da sede do Centro Acadêmico, precisava reencontrar e abraçar os amigos que mal conhecia de perto, precisava visitar e usufruir de todas as bibliotecas possíveis… Ela precisava voltar a viver. Praticamente dois anos de pandemia já haviam sabotado seus planos o suficiente e mais nada teria qualquer poder de estragar suas metas.
Não conseguia evitar rir de sua própria inocência ao sair rapidamente do prédio 24, assim que a turma foi dispensada pelo professor e rumar em direção ao Starbucks. Um pouco de cafeína e bastante glicose no sangue com toda certeza a ajudariam a aguentar aquele dia até o fim, ou pelo menos até voltar para casa. Quase esbarrou em pelo menos 354 crianças ou adolescentes no caminho e ainda teve de ficar — justamente — no fim da fila, com pelo menos mais vinte uniformizados à sua frente. Praguejou em seus pensamentos à medida que buscava de maneira pouco charmosa sua carteira nos fundos da mochila coberta de pins e algumas fitas e quando a achou, mais vazia do que quando saíra de casa, quis chorar só de lembrar o porquê.
“Eu não fiz uma burrada dessas”, pensou rindo mais uma vez e se lembrando da sua desastrosa manhã.
6h30 — Despertador toca “Kissaphobic” de Make Out Monday.
6h45 — Despertador toca “Aqui Estamos Nós” da Manu Gavassi.
6h50 — Despertador toca “Graveto” da Marília Mendonça.
7h — Despertador toca “Sweater Weather” de The Neighbourhood.
Ao ouvir um som tão alto saindo do seu celular que vibrava de modo insistente na cômoda posicionada estrategicamente no lado oposto do quarto, Nathália se viu obrigada a abrir os olhos e levantar da cama ligeiramente alta demais para sua altura e, depois de tropeçar na eterna bagunça que chamava de quarto, conseguiu, enfim, desligar a música que estava quase no final, sem deixar de notar o horário avançado.
Ela estava atrasada. A virginiana mais organizada da face da Terra estava atrasada justamente no primeiro dia de aula.
“Não era qualquer primeiro dia de aula”, pensou.
Era o primeiro dia de aula depois da pandemia, depois de dois anos trancada em casa saindo só quando necessário e sempre usando máscara, lambuzando tudo e até a si mesma com tanto álcool gel que facilmente poderia ficar embriagada só pelo cheiro, se isso ao menos fosse possível. Era o primeiro dia de aula depois de uma pandemia, era praticamente o primeiro dia na universidade, haja vista que a última vez que estivera no campus fora no início de 2020. Era o primeiro dia de aula de novo e ele tinha de ser perfeito.
Mas ela estava atrasada. Estava atrasada e sua agenda não permitia atrasos.
Em um piscar de olhos, Nathália já se encontrava na plataforma da linha vermelha do metrô aguardando um vagão onde coubesse. Na pressa, esqueceu-se de comer alguma coisa, de amarrar os cadarços e não tinha certeza se fechou todos os zíperes de sua mochila. Revirou os olhos tentando esquecer a quantidade vergonhosa de tropeços que protagonizou até chegar em seu destino e decidiu, por fim, amarrar os cadarços de seus coturnos brancos em um laço bem dado. Um borrão vermelho caindo nos trilhos passou por sua visão periférica e, dessa forma, a mackenzista teve certeza de que não tinha fechado os bolsos tão bem assim. Aquele tal borrão era seu TIA.
Sentindo-se impotente, a jovem praguejou sem ligar para as pessoas ao redor e entrou na porta que rapidamente se abriu à sua frente. Naquele vagão sujo e mal cuidado, ela fechou os olhos e tentou se acalmar. Colocou os fones de ouvido e entrou no modo automático até chegar na estação Higienópolis-Mackenzie, sem lembrar ao certo da baldeação no meio do caminho.
— Nathália!
Ao ouvir seu nome saindo da boca do desconhecido barista, a jurista em formação — como diria o coordenador da Faculdade de Direito — pegou seu cappuccino com leite vegano e saiu correndo com tanta classe quanto uma girafa recém-nascida em direção ao prédio 3 para pedir um novo TIA. Tentou tomar um gole mas queimou a língua e praguejou mais um pouco quando se lembrou que ainda teria de procurar uma dupla para o trabalho de Direito Civil, a única aula onde se perdeu de suas amigas pois confundiu os professores na hora de montar a grade. Nessa altura do campeonato, Nathália já estava questionando se de fato era a garota mais organizada que conhecia.
Começou a rir de sua prepotência. Como um dia pôde se nomear a garota mais organizada que conhecia se nem ao menos era capaz de se lembrar de amarrar os cadarços? Ela estava prestes a completar 20 anos, deveria conseguir sair de casa sem tropeçar em seus próprios pés. De repente, Nathália foi ao chão derrubando toda a bebida quente em sua blusa branca, mas dessa vez a proeza não foi um trabalho solitário.
— Minha Nossa! Mil perdões, eu não tinha te visto! — disse uma voz discretamente conhecida, embora Nathália não reconhecesse exatamente de onde. — Eu estava procurando meu carregador na mochila e acabei nem olhando para frente.
Sem pensar muito, aceitou a ajuda do jovem de cabelos cacheados e conseguiu se levantar com um pouco mais de graça do que exibia antes. A jovem estava cada vez mais mal-humorada. Seu dia só piorava. Agora sua blusa favorita passou de branca a manchada e grudenta graças ao rapaz que virou alvo de um olhar furioso e desconfiado. Ela o conhecia de algum lugar, só sabia disso.
— Meu nome é Lucca — tentou se apresentar à fera iminente. — A gente estuda junto desde o início da faculdade, não sei se você lembra. Eu costumo sentar no fundo, do lado da janela. Acho que a gente tomou trote junto — completou coçando a cabeça.
Em meio a um olhar curioso compartilhado entre a dupla parada no meio do caminho de tijolos perto da chapelaria, as memórias daquela quarta-feira no início de fevereiro de 2020 voltaram de maneira intensa.
Lucca estava ao lado de Nathália durante todo o dia, a tinta jogada no cabelo da moça respingou na blusa velha dele e o ovo que fora quebrado em sua cabeça recém-raspada quase caiu no olho dela. Decidiram contar piadas de qualidade questionável juntos no semáforo e conseguiram arrecadar a respeitável quantia de exatos R$10,25 — em moedas. Passaram o dia um ao lado do outro, rindo um do outro e de si mesmos. Mas no dia seguinte, talvez por conta da ressaca ou da vergonha, não se falaram. Mal se cumprimentaram com um breve aceno.
— Nathália — respondeu com um olhar mais sereno. — Acho que te vi no fundo da aula agora há pouco — foi tudo o que conseguiu responder com seu ânimo atual (ou falta dele).
O rapaz sardento sorriu satisfeito por ser reconhecido e ajeitou seus óculos. Entretanto, o sorriso rapidamente foi cessado quando reparou na blusa manchada da colega diante dele e sentiu-se no dever de ajudá-la. Afinal, se não fosse por sua desatenção, ela ainda estaria com a blusa intacta e o copo cheio. E talvez não estivesse tão estressada. “Talvez ela goste muito dessa blusa”, pensou ao notar que aquele mesmo rosto obstinado já demonstrava a iminência de um crime mais uma vez.
Buscando uma solução rápida e tentando manter não só sua integridade física, mas também o réu primário da garota ligeiramente mais baixa do que a atual média brasileira, Lucca ofereceu sua camiseta do Werder Bremen que carregava na mochila e prometeu levar a blusa dela para casa e devolvê-la limpa no dia seguinte. Apesar da inicial relutância, Nathália preferiu aceitar a oferta a voltar suja para casa ou mesmo ir à secretaria naquele estado.
Juntos, a inesperada dupla partiu em direção aos prédios históricos, cuja arquitetura parecia intacta, tão linda e deslumbrante quanto eram capazes de recordar. Eventualmente, a garota de cabelos rebeldes revelou porque precisava pedir um TIA novo e a razão de tanto estresse em um dia especialmente ensolarado, mas não se preocupou em ser algo além de lacônica. Sua disposição para conversar se não estivesse no zero, estava quase nele.
O garoto de riso frouxo até tentou fazer algumas piadas mas decidiu respeitar o espaço dela, prestando atenção aos poucos detalhes contados. Lucca reparou na presença de um certo brilho no olhar dela, mesmo em meio à tamanha chateação. “Talvez ela fosse mais alegre em um dia melhor”, cogitou. Afinal de contas, uma garota cuja mochila era furta-cor, refletia qualquer forma de luz e estava coberta de pins com dizeres como “go vegan” ou logos de bandas como Imagine Dragons tinha tudo para ser mais interessante do que aparentava naquele dia e isso o intrigava. Sem perceber, pensou em voz alta:
— Acho no mínimo irônico que, depois de sobreviver a uma pandemia no Brasil, você ainda queira ter as coisas sob controle. Se teve uma coisa que eu aprendi nesses dois anos trancafiado em casa, além de como tocar saxofone, foi que não temos nada sob controle. Não importa o quanto a gente queira ou tente.
Nathália não sabia se perguntava algo acerca das habilidades musicais dele ou se deveria sentir-se ofendida com a crítica recebida. Escolheu a segunda opção e quando deu por si, estava revirando os olhos para ele enquanto entrava no banheiro feminino localizado no subsolo do prédio do Direito.
A jovem estressada rapidamente entrou na primeira cabine vaga que encontrara e trocou de blusa. Repetindo o que acabara de ouvir e ironizando seu colega, começou a prestar atenção nas palavras dele e em seu coração. Não era saudável que alguém na idade dela estivesse com a pressão tão alta antes do meio-dia.
Ao terminar de se arrumar, saiu da cabine e olhou para seu reflexo no espelho. E respirou fundo. Inspirou e expirou umas três ou quatro vezes. Lavou delicadamente o rosto e seguiu em direção às escadas do prédio 3. Quando os raios de sol tocaram seu rosto, aquecendo-o de maneira singela e a leve brisa atingia suas discretas covinhas que se formavam com cada vez mais destaque, Nathália deixou a mochila escorregar de maneira desengonçada até o chão do bosque e deitou no primeiro banco que viu, fechando os olhos em uma tentativa de aflorar os outros sentidos.
E nesse momento ela percebeu que sua inusitada e agradável companhia talvez tivesse uma ponta de razão. Enquanto tudo parecia mudar, certas coisas pareciam permanecer as mesmas. Havia álcool gel espalhado por todo o campus, mas os tijolos dos prédios históricos seriam sempre da mesma cor. Talvez a sede do CA estivesse mais limpa e organizada do que jamais fora capaz de imaginar, mas provavelmente continuaria tropeçando na escadaria em frente ao Starbucks em dias chuvosos. Talvez o mundo nunca mais seja como um dia foi e, na realidade, provavelmente ninguém nunca mais será quem foi um dia. E por mais estranho o quão reconfortante isso parecesse, ela continuava sendo mais estabanada e desastrada do que um dia admitiria e, de maneira impressionante, percebeu que talvez estivesse mais preparada para “voltar ao normal” do que pensava. Talvez não tivesse perdido o brilho no olhar ao conhecer — ou reconhecer — as pessoas ao seu redor e talvez não pudesse e nem precisasse controlar o mundo ao seu redor.
Enquanto um discreto sorriso se formava em seus lábios, Nathália notou uma estranha movimentação ao seu redor.
— Meu Deus, você carrega seu Vade na mochila????? — Disse Lucca enquanto levava a mochila esquecida no meio do caminho para o banco onde haviam dois copos de alguma bebida quente do Starbucks.
Nathália não podia deixar de notar a cena quase ridícula em sua frente e antes mesmo que pudesse formular qualquer pergunta, o rapaz estranhamente alto prontamente explicou.
— Fiquei me sentindo mal por ter feito você perder um café inteiro, então fui comprar dois mochas brancos. O seu com leite de amêndoas, obviamente — completou ao notar a expressão questionadora que o encarava. — E enquanto te procurava, tropecei nessa rocha brilhante e decidi que seria uma boa ideia tirá-la do caminho.
— Nunca tomei um mocha branco — foi a primeira resposta que pôde pensar. — E eu prefiro ficar com as mãos livres a carregar mais de dois quilos nos braços, não que isso seja da sua conta.
Eles se olharam e logo após tomarem o primeiro gole de suas respectivas bebidas, compartilharam um sorriso peralta, como se fossem velhos amigos.
— Obrigada — falou Nathália entre um sorriso sincero e discreto.
— Parecia o mínimo — respondeu Lucca dando de ombros enquanto assoprava seu copo, tentando evitar que queimasse ainda mais a língua. — Amanhã a gente destroca as blusas?
Ela assentiu enquanto ria ao se lembrar que vestia uma blusa de um time cujo nome não fazia ideia de como pronunciar e quase três números maior que o seu.
— Não te imaginava tão calada assim.
— Hoje não foi o melhor dia. Talvez amanhã eu melhore.
Em silêncio, brindaram seus copos e observaram aquele campus que mesmo pouco explorado, já parecia um lar para eles.
— Então… Quer fazer dupla nesse trabalho de Direito das Coisas? — Lucca disse, quebrando o silêncio depois de alguns minutos
Nathália assentiu sorrindo e prontamente a inesperada e mais nova dupla de amigos emendou uma conversa animada, percebendo que talvez se dessem melhor do que pensavam. No fundo, a virginiana não podia evitar pensar que, de fato, tudo que pensava ter sob controle escapou de suas mãos, mas talvez isso não fosse algo tão ruim. Talvez, no fim das contas, tudo se ajeitasse.
publicado por Letícia Juang
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