Por Julia Monteiro Nalles
Atenção: pode conter spoilers leves.
A primeira temporada da série Pose, lançada pela Fox Extended Networks, em 2018, se passa no final de década de 1980, em Nova Iorque. A série aborda principalmente uma parcela da população que vivia à margem da sociedade e traz questões muito importantes e – até hoje – não suficientemente pautadas.
A série tem como protagonista Blanca, uma mulher transexual, negra e – como ela descobre no primeiro episódio – portadora do vírus da AIDS. Blanca trabalha como manicure e mora na casa de Elektra Abundance, também uma mulher negra e trans, que vive de forma luxuosa por conta do relacionamento que mantém com um homem muito rico. Blanca foi acolhida por Elektra após ser expulsa de casa pelos pais, assim como outros moradores da Casa Abundance, que também vivem sob a proteção de Elektra. Logo no início da série, se torna perceptível que esse cenário não é incomum e que são várias as Casas formadas por uma Mãe – a líder – e os seus Filhos – aqueles a quem ela acolhe. Essas Casas, entretanto, não são simplesmente um centro de acolhimento, elas são equipes e competem entre si por fama e reconhecimento dentro de sua própria comunidade. Tais objetivos são conquistados por meio de um Baile que ocorre periodicamente nos fundos de um edifício novaiorquino. Nesses eventos, frequentados majoritariamente – para não dizer completamente – pela comunidade LGBT+, são anunciadas categorias para as quais os competidores desfilam, de forma que um grupo de jurados avalie as suas escolhas de vestimenta, a habilidade de desfilar, a adequação à categoria proposta e o quão real o competidor faz o visual parecer. O ganhador de cada categoria recebe um troféu e quanto mais troféus os moradores de uma Casa conseguem, mais prestígio a Casa tem.
A Casa Abundance é uma das mais famosas, entretanto a relação entre Elektra e seus Filhos não tem o esperado carinho maternal, o que contribui para que Blanca – após ser diagnosticada com HIV – resolva formar a sua própria família: a Casa Evangelista. Dessa forma, ao longo da série, Blanca acolhe moradores com os quais forma um forte vínculo familiar, além competir pelos troféus e, consequentemente, pela ascensão da Casa Evangelista.
Assim, Pose faz uma tentativa de abordar com delicadeza, mas seriedade, os tantos assuntos provenientes do cenário já exposto: AIDS, homofobia, transfobia, problemas de autoimagem, racismo, entre outros.
No que tange à forma com que a série lida com a AIDS, fica claro desde o princípio que se trata de uma época na qual o diagnóstico positivo é encarado como uma sentença de morte. Além de vermos a imagem dolorosa de pessoas jovens morrendo aos poucos em hospitais, encaramos também a perspectiva daqueles que recentemente descobriram a doença, mas que ainda estão saudáveis. O medo sentido pelos personagens, que têm apenas uma ideia extremamente assustadora do que está por vir, e a dificuldade sofrida por eles em ver motivos para seguir com suas vidas são transmitidos de modo muito bem sucedido para o espectador, que consegue se conectar com as histórias.
Outro fator abordado é a quase que completa falta de conhecimento sobre a doença. Ela era tida como algo que existia apenas dentro da comunidade LGBT e sobre o qual aqueles em relações heterossexuais nada tinham que se preocupar. Isso somava-se perfeitamente à homofobia, de modo que a própria doença virava um tabu, e a sociedade reproduzia discursos que diziam que a AIDS seria uma espécie de punição divina ou decorrência do evolucionismo. Com isso, os portadores do vírus tinham ainda menos esperança, uma vez que parecia mais conveniente para a sociedade deixá-los morrer do que descobrir uma cura.
Aliás, em relação à homofobia, ela é exposta em Pose não só com a forma pela qual a AIDS era vista, mas também por serem retratados tantos personagens que tiveram que romper completamente com suas famílias por não serem aceitos por elas. Esses, geralmente, tinham que recorrer a atividades como prostituição ou tráfico de drogas, por vezes mesmo quando tinham a sorte de terem sido acolhidos por uma Casa.
Todavia, o fato de a homofobia estar em pauta não impede a série de tratar de uma questão também muito relevante e ainda extremamente presente nos dias de hoje: a transfobia, não só da sociedade como um todo, mas também dentro do meio LGBT. Além de as personagens trans serem marginalizadas, elas por vezes não tinham espaço nem mesmo em ambientes já não frequentados por heterossexuais. Sobre isso, durante a série, Blanca vai a um novo bar gay em Nova Iorque, onde ela é ridicularizada pelos frequentadores e expulsa do local. A personagem não se conforma com tamanho preconceito dentro de sua própria comunidade e – por alguns episódios – faz disso o seu principal foco. Fica clara, então, a ideia de que, mesmo dentro de um grupo oprimido, existem diferentes níveis de privilégio, um ponto aliás bastante abarcado por Pose.
Essa opressão leva as personagens trans a fazerem de tudo para conseguirem “passar” por mulheres cisgênero. Nesse ponto, entra novamente a questão dos privilégios, pois algumas, que não têm como pagar pelas alterações físicas necessárias para se identificarem com a própria imagem, acabam recorrendo a alternativas perigosas. Em determinado ponto da série, duas personagens, que já tomam hormônios e que economizam para a cirurgia de troca de sexo, passam a sentir que isso não é suficiente para que a sociedade as veja como mulheres. Por isso, elas vão a procura de uma profissional que possa aplicar o necessário para que seus corpos fiquem mais curvilíneos. Porém, o preço cobrado é muito alto, de modo que elas recorrem a uma outra pessoa que o faça por menos dinheiro. Essa escolha é claramente menos segura e não teria sido feita por alguém com mais recursos. Depois disso, uma delas fica muito doente, consegue se recuperar, mas descobre que não obteve o resultado desejado e que desfigurou o seu corpo permanentemente.
Por fim, ainda se tratando de privilégios dentro de um grupo oprimido, há o racismo. Certamente não é coincidência que os personagens principais da série, retratados em um contexto de extrema vulnerabilidade, são, em sua grande maioria, negros. Afinal, apesar de ter sido uma época extremamente difícil para a comunidade LGBT por inteiro e por ela até hoje passar por inúmeras dificuldades, o racismo faz com que as oportunidades sejam muito mais facilmente alcançadas por pessoas brancas, de modo que os personagens que não tiveram alternativa senão dormir na rua e recorrer a atividades ilícitas são majoritariamente negros.
Pose expõe os dilemas de grupos intensamente oprimidos por todos os lados, em uma época em que a sua vulnerabilidade era acentuada por uma doença extremamente assustadora e perigosa. Além de permitir ver mais desse cenário não muito explorado por outros filmes e séries, ainda possibilita a comparação com os dias atuais, nos quais – em vários aspectos – muitos dos mesmos problemas permanecem. No Brasil, a primeira temporada da série Pose está disponível na Netflix e é uma ótima opção para quem se interessar pelas questões que aqui foram expostas.
Publicado por Julia Monteiro Nalles
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