Entre o Amor, a Dor e o Crime: A Anatomia Brutal de Andrew e Ashley, em “The Coffin of Andy and Leyley”

Muito além do choque, The Coffin of Andy and Leyley nos convida a mergulhar em uma história de desamparo, trauma e  distorção de laços humanos mais básicos. Uma análise pessoal sobre como o abuso pode construir monstros e vítimas ao mesmo tempo.

Quando comecei a jogar The Coffin of Andy and Leyley, não imaginei que aquele pequeno RPG Maker fosse me prender por tanto tempo, não apenas pela história, mas pela sensação incômoda que ficou após cada final, cada escolha, cada silêncio.

Andy e Leyley são irmãos jogados ao abandono. Essa frase sozinha já carrega uma tragédia: crianças sem orientação, sem acolhimento, deixadas em um ambiente permeado por abusos físicos e emocionais. Mas o que o jogo entrega vai além do abandono. Ele explora, de forma brutal, como o trauma se infiltra na formação da identidade, na construção do afeto e, eventualmente, até na expressão da sexualidade.

Vale Ressaltar: Quando citar ANDREW e ASHLEY, refiro-me à fase adulta dos personagens. Já ANDY e LEYLEY, refiro-me à infância e adolescência dos personagens.

A seguir, compartilho uma análise que, como jogador e estudante do comportamento humano, é mais uma reflexão profunda do que uma análise profissional e, talvez por isso mesmo, tão crua quanto o próprio jogo.

A Infância Perdida: O Começo da Deformação

Desde as primeiras cenas do jogo, percebemos que Andy e Leyley não são crianças comuns. Andy carrega desde cedo o peso de ser o “protetor” de Leyley, não por escolha, mas por necessidade. A ausência dos pais (e pior: sua presença agressiva) força Andy a assumir responsabilidades emocionais e práticas muito além da sua idade.

É nesse contexto que nasce a base da dinâmica deles: Andy não é apenas irmão; ele é pai, mãe, tutor. Para Leyley, Andy é o único fio que a mantém conectada ao mundo. A primeira relação de afeto que ela reconhece é ele, e apenas ele.

Essa hiperresponsabilização infantil é, na psicologia do desenvolvimento, um marcador grave de trauma. Crianças que crescem tendo que cuidar de si e dos outros geralmente desenvolvem dificuldades severas de estabelecer limites saudáveis no futuro. No caso de Andy e Leyley, esses limites simplesmente nunca existiram.

Diagnósticos Possíveis: Uma Construção de Transtornos

Analisando o comportamento dos dois ao longo do jogo, alguns diagnósticos possíveis surgem. Não como rótulos fixos, mas como lentes para entender o que poderia explicar suas ações.

Andy apresenta traços claros de:

  • Transtorno de Personalidade Antissocial (TPA): frieza emocional com terceiros, uso da violência instrumental, incapacidade de remorso genuíno em vários momentos, manipulação de situações para atingir seus objetivos.
  • Transtornos Relacionados ao Trauma: dissociação emocional, impulsividade, dificuldade extrema em lidar com frustração ou abandono.

Leyley, por outro lado, demonstra traços compatíveis com:

  • Transtorno de Personalidade Borderline (TPB): medo intenso de abandono, idealização e desvalorização rápida de Andy, impulsividade, crises emocionais violentas, tentativas de se autodestruir quando se sente rejeitada.
  • Transtorno de Personalidade Histriônica (TPH): uma necessidade intensa de ser o “centro das atenções”, chamar a atenção, principalmente quando diz respeito ao Andy.
  • Dependência Emocional Extrema: não apenas afeto, mas uma necessidade vital de Andy, como se sua existência perdesse o sentido sem ele.

Esses quadros não surgem do nada. São forjados pelo ambiente de negligência, violência e privação de cuidado afetivo que ambos sofreram. A personalidade deles, no fundo, é a consequência direta da forma como foram (ou deixaram de ser) amados.

O Amor que Dói: Sexualidade como Reflexo do Trauma

Um dos aspectos mais chocantes do jogo para muitos jogadores é a transformação do vínculo entre Andy e Leyley em algo sexual. Para quem observa de fora, é fácil rotular isso apenas como “incesto”, “tabu” ou “degeneração”. Mas essa visão simplista não faz justiça à complexidade psicológica do que está acontecendo.

O envolvimento sexual entre Andy e Leyley não nasce de desejo genuíno no sentido tradicional. Nasce da confusão absoluta entre amor, proteção, carência e desespero. Sem referências externas saudáveis, sem adultos que pudessem ensinar limites, Andy e Leyley desenvolveram uma única via de contato emocional possível: um ao outro.

Na mente deles, amor, toque, sobrevivência e pertencimento são uma coisa só. Se Andy é o único porto seguro para Leyley, e vice-versa, então qualquer forma de conexão, inclusive sexual , se torna válida, aceitável, até necessária.

O sexo, nesse contexto, é menos sobre prazer e mais sobre preservação emocional. É um ritual desesperado de apego, uma forma distorcida de dizer “não me abandone”.

O jogo não trata isso com erotização barata. Pelo contrário: é desconfortável, triste, doloroso. O envolvimento deles é mostrado como mais uma consequência trágica do abandono, não como algo glamouroso.

Co-Dependência Extrema: Quando o Amor Mata

A relação entre Andy e Leyley é um caso extremo de co-dependência. Cada um existe apenas para o outro. Eles não têm espaço para desenvolver individualidade, autonomia ou relações externas.

Essa fusão emocional total é tóxica, mas para eles é a única coisa que impede o vazio completo. Quando ameaçados de separação, ambos reagem com violência extrema, não apenas contra o mundo, mas até um contra o outro.

É como se, sem Andy, Leyley simplesmente deixasse de existir. E sem Leyley, Andy perdesse qualquer propósito. Eles são, ao mesmo tempo, prisioneiros e carcereiros um do outro.

Essa simbiose doentia explica por que ao longo do jogo vemos comportamentos tão autodestrutivos: eles preferem morrer juntos a viver separados. O laço é tão forte, e tão distorcido, que a morte conjunta parece uma solução natural.

Crime, Culpabilidade e Tragédia

Sob uma ótica legal, Andy e Leyley seriam considerados, em muitos cenários, semi-imputáveis. Teriam consciência de seus atos? Parcialmente. Mas a capacidade de autodeterminação deles foi gravemente comprometida pelo trauma.

A Justiça, porém, raramente é capaz de lidar com essas nuances. O mundo fora do jogo provavelmente veria Andy e Leyley apenas como criminosos monstruosos, ignorando toda a cadeia de horrores que os moldou.

E talvez esse seja o golpe final que The Coffin of Andy and Leyley nos dá: a percepção amarga de que, no fundo, eles são tanto vítimas quanto agressores. E que, na ausência de cuidado, qualquer criança pode se tornar uma aberração emocional, não por maldade, mas por pura sobrevivência.

Os Pais: Negligência, Narcisismo e Abandono

Enquanto Andy e Leyley são os protagonistas dessa história, o verdadeiro “cenário” em que seus destinos foram moldados é o terreno fértil da negligência e da disfunção familiar. O psicológico dos pais, ou a falta deles, é o que define, sem dúvida, as tragédias de seus filhos.

Douglas: O Pai Ausente

Douglas é o tipo de figura que parece não existir no jogo, ou melhor, existe apenas como uma sombra distante. Ele é um homem fisicamente ausente, mas psicologicamente igualmente ausente. Sua função no núcleo familiar é mais simbólica do que prática.

O pai de Andy e Leyley não é alguém que se importaria, ou mesmo que tivesse a capacidade de se importar. Ele representa a ausência de autoridade, afeto e responsabilidade. Douglas está distante não porque precise estar, mas porque opta por estar, tanto emocionalmente quanto fisicamente. O afastamento dele não é acidental. Não é um caso simples de falha no sistema, é um abandono ativo. Isso se reflete na maneira como ele trata seus filhos: eles não são vistos como indivíduos dignos de amor ou respeito. Para ele, suas crianças são apenas mais dois fardos no caminho da sua vida egoísta.

Esse abandono físico e emocional cria um vácuo de autoridade na vida dos filhos, um vazio que eles, inevitavelmente, precisam preencher com o que está à mão: a própria mãe, Renne, que acaba se tornando a figura central de afeto (mas também de opressão).

Douglas não é apenas um pai ausente; ele é um exemplo cruel de como o descaso paterno pode transformar uma criança em um ser que tenta desesperadamente preencher o vazio com amor, mas encontra apenas frustração e dor.

Renne: A Mãe Narcisista

Renne, ao contrário de Douglas, está presente fisicamente, mas seu comportamento é ainda mais destrutivo para seus filhos. Ela não é uma mãe negligente, mas uma mãe narcisista, cujas necessidades emocionais estão sempre à frente das dos filhos. Renne coloca seus próprios desejos e necessidades em primeiro lugar, sem considerar os efeitos disso em seus filhos.

Ela teve Andy aos 15 anos, muito jovem, e logo depois, com apenas 17 anos, teve Leyley. Desde cedo, Renne coloca Andy na posição de “pai” de Ashley. Isso não acontece de forma suave e gradual. Desde muito novo, Andy é forçado a cuidar de Ashley como se fosse um adulto responsável, mas mais do que isso, ele é tratado como uma figura paterna, fraternal, e até romântica para Renne. A inversão de papéis é clara: Andy é “o pai” de Ashley, mas também é o companheiro emocional de Renne, sendo constantemente sobrecarregado com a responsabilidade de lidar com suas crises e necessidades afetivas.

Renne, com seu narcisismo e foco em si mesma, não permite que Andy tenha a chance de ser apenas criança. Ele não é tratado como filho, mas como uma extensão dela mesma, uma ferramenta emocional para aliviar seus próprios vazios. Andy não tem permissão para ser apenas o irmão de Leyley ou apenas o filho de Renne. Ele é, na prática, um “marido”, um “amigo”, e uma figura “paterna” ao mesmo tempo. Ele se torna, assim, uma criança que aprende a viver por e para os outros, sacrificando sua própria identidade e bem-estar emocional.

Esse tipo de relação cria uma parentificação precoce extremamente prejudicial. Parentificação é quando uma criança assume papéis que deveriam ser dos adultos, como cuidar dos irmãos ou até dos próprios pais. Andy não apenas cuida de Ashley e de Leyley, mas também se vê preso ao papel de “adulto emocional” para Renne, de alguém que deve fornecer apoio, cuidado e até validação para a mãe.

O Impacto Profundo de Pais Narcisistas e Ausentes

A combinação de um pai ausente e uma mãe narcisista cria uma tempestade emocional perfeita para o desenvolvimento de filhos com sérios transtornos psicológicos. Para Andy, essa dinâmica cria uma linha tênue entre o amor e a obrigação, entre o desejo de ser amado e a incapacidade de receber amor genuíno. Ele cresceu tendo que merecer o afeto de sua mãe, não como um ser humano digno de amor, mas como alguém que precisa servir a ela. Sua identidade é absorvida, distorcida, e completamente moldada pela necessidade de ser útil para sua mãe.

Leyley, por sua vez, se vê na mesma posição de inversão de papéis. Como a mais jovem, ela também não tem espaço para ser apenas filha. Ela é uma criança sobrecarregada emocionalmente por uma mãe que exige mais do que pode dar, e um irmão que tenta desesperadamente ser tudo ao mesmo tempo. O que deveria ser um relacionamento fraternal, simples e cheio de afetividade, torna-se uma busca constante por aprovação, com Leyley se sentindo incapaz de se conectar com alguém de forma saudável. Ela se vê refém do que a mãe e o irmão precisam dela, sem nunca ter a chance de se tornar quem poderia ser, uma pessoa plena, com suas próprias necessidades e desejos.

Parentificação e a Criação de um Vínculo Patológico

No caso de Andy e Leyley, a ausência de uma estrutura familiar saudável os levou a criar um vínculo patológico. Eles não têm, na prática, modelos de comportamento adequados a seguir. Quando uma criança é forçada a se tornar um adulto prematuramente, ela desenvolve uma visão distorcida de si mesma e do mundo ao seu redor. Andy, portanto, não sabe mais onde começam suas responsabilidades como filho e onde começam suas responsabilidades como cuidador. Ele não sabe o que é amor saudável porque foi sempre condicionado a ser uma figura funcional, não um ser humano completo.

Isso gera um cenário onde, no momento em que Andy e Leyley se encontram fisicamente, o vínculo que eles têm já está distorcido e fragilizado. Eles buscam no outro a validação que nunca receberam de seus pais, mas a relação, marcada por tanto sofrimento e dependência, não pode gerar algo genuíno ou sustentável.

O relacionamento deles é o último estágio de um ciclo de dor, solidão e distorção afetiva, alimentado por anos de negligência, narcisismo e abandono. Eles não sabem como se relacionar de maneira saudável, porque nunca tiveram exemplos. Eles estão condenados a repetir o que viveram: um amor construído a partir de necessidades insatisfeitas, não de afeto genuíno.

Conclusão: O Horror Real Está Dentro de Nós

No final das contas, o maior terror de The Coffin of Andy and Leyley não são os atos horríveis que eles cometem. É o reconhecimento desconfortável de que, sob circunstâncias suficientemente cruéis, qualquer um de nós poderia se perder da mesma forma.

Andy e Leyley não são apenas personagens trágicos. Eles são lembretes: sobre como a negligência gera monstros. Sobre como o amor pode ser tão tóxico quanto salvador. E sobre como, às vezes, os piores horrores humanos não nascem do ódio, mas da solidão.

A violência que eles cometem entre si, tanto física quanto emocional, não é apenas fruto de suas escolhas, mas de um legado de dor. Eles não são apenas vítimas do mundo ao seu redor, mas do mundo interno que seus pais lhes proporcionaram: um lugar onde o amor e a dor estão entrelaçados, e onde o abandono não é apenas físico, mas emocional e psicológico.

O resultado é o que vemos em “The Coffin of Andy and Leyley”: uma tragédia humana profunda e irreversível, forjada pela falha dos pais, mas perpetuada pelas escolhas dos filhos.

Publicado / Editado / Desenhado / Escrito: Bruno M.Z.A.S.B.C.


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Um comentário em “Entre o Amor, a Dor e o Crime: A Anatomia Brutal de Andrew e Ashley, em “The Coffin of Andy and Leyley”

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  1. Adorei seu entendimento, e mostra que os personagens descritos são muito próximos da realidade, de que para se criar um ser humano quebrado, inconsequente e apático basta o anular e isolá-lo de afeto e cuidados parentais.

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