Retrato

Por: Naiara Oliveira

O canto dos pássaros em sinfonia com o tilintar do relógio é o convite para a manhã fria de mais um dia. Me obrigo a me desvencilhar dos suplícios que dão a sensação de me abraçar na tentativa de impedir que eu me levante. Os próximos movimentos precisam ser rápidos: banho morno, água gelada no rosto e café quente.

Novamente, me sinto em ritmo desacelerado. Tudo ao meu redor está em completo silêncio. As reclamações matinais do Érik não passam de zumbidos que logo esquecerei ao longo do dia, embora sempre sejam as repetidas frustrações que ele nunca se preocupa em resolver. Érik é o meu marido, apesar disso, eu nunca me sinto tão sozinha quanto quando estou sob sua companhia.

É preciso sair do transe hipnótico que constantemente me coloca a reingressar no ritmo frenético, acordar e organizar tudo para começar mais um dia de trabalho. A rotina no metrô caótico da linha 3-vermelha me proporciona um dos poucos momentos para refletir, isso quando eu não estou em meio a respiração ofegante de pessoas diante de mim.

Ruídos, ambulantes, alarmes, avisos. Quando o metrô está razoavelmente calmo o suficiente para eu conseguir me sentar, penso. Ou melhor, flutuo. Flutuo sob a fantasia de viver uma vida calma, com problemas corriqueiros, um filho bagunceiro e uma família para encontrar em datas comemorativas. 

Não pude estudar, apesar da ideia de fazer faculdade sempre fosse o meu maior objetivo. Após atingir a maioridade, depois de 11 anos morando no abrigo para crianças órfãs, eu e o Erik precisávamos do apoio um do outro para enfrentar o mundo. Pensamos que seria mais fácil se fizessemos isso juntos. Quando Erik chegou ao abrigo, eu estava pintando um desenho do Saci, meu personagem favorito do folclore brasileiro. Ele estava com medo e eu fui a primeira pessoa a perguntar o seu nome. Desde então, nos tornamos amigos. Na adolescência, essa amizade se tornou um namoro. Ambos sabíamos que nunca seríamos adotados. 

Eu não me lembro da minha vida em família, cheguei muito cedo ao abrigo. Tudo o que se sabe é que minha mãe era solteira. O Erik, por ter chegado um pouco mais tarde, conhece toda a história da família e guarda duras memórias. Os seus pais eram usuários de drogas, constantemente brigavam e o abandonava nas ruas. Ele aprendeu a se virar sozinho. Em uma noite de ano novo, em meio a mais um desses abandonos, ele conta que foi gravemente ferido ao ser atropelado e que do pronto-socorro já foi encaminhado para o abrigo. Dias depois ele me encontrou por lá. 

Desde então, formamos um casal infeliz, com um matrimônio devastado por brigas, agressões e traições. Ele se torna apenas um dos vultos na minha história.

Após um longo dia, voltei às 23h para casa, mas naquele dia tudo foi diferente. Angustiada pela vida miserável que tive, resolvi voltar a pé para casa e economizar a passagem do ônibus. O caminho da estação até a minha casa costumava ser seguro, mas naquele maldito dia foi diferente. Rua deserta, poucos carros passando, a iluminação piscando, quando de repente fui puxada por uma mão imunda e fétida que cobriu a minha boca e o impulso empenhado me levou ao chão, logo em seguida senti uma pancada. Vultos e a sensação de queimação sobre as minhas costas é tudo o que eu me lembro. A minha última lembrança viva foi de momentos do meu retrato que reluzia sobre a faca afiada prestes a me rasgar. Eu estava deprimente e horrorizada, cabelos desgrenhados e ensopados de sangue. 

Logo em seguida acordei aqui. Vermes sanfonando e trançando sobre a minha carne em fase de putrefação, enquanto o chorume do meu corpo se mistura com resquícios de tecidos que ainda me cercam ao formar uma piscina vazando pelas frestas da madeira do caixão estourado pela umidade. 

Por um tempo acreditei no paraíso, mas isso não existe. Ou talvez, se existir, eu não fui convidada.

Publicado por: Naiara Oliveira

Siga o JP3!

Instagram: @jornalpredio3

Facebook: fb.com/jornalpredio3


Mais notícias e mais informações:


O Jornal Prédio 3 – JP3, fundado em 2017, é o periódico on-line dos alunos da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, organizado por alunos do curso e com contribuição de toda a comunidade acadêmica mackenzista. Participe!

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Crie um site ou blog no WordPress.com

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: