A DISCRICIONARIEDADE DOS ADMINISTRADORES NA SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA

Por Gisely Hiromi Uehara Cunha

Antes do surgimento do Estado de Direito e do princípio da legalidade, vigorava o Estado absolutista em que não havia norma que limitasse a atividade do monarca, pelo contrário, predominava a sua vontade. Contudo, com o estabelecimento do Estado de Direito, foi implementada, aos poucos, a ideia de que o poder do Estado deveria estar subordinado à lei e aos demais poderes, como o legislativo, o executivo e o judiciário, que deveriam agir de forma independente.

No âmbito  do  Estado de Direito, a Administração Pública consegue atingir seus objetivos devido aos poderes que dispõe, já que  eles lhe asseguram uma posição de supremacia em relação ao particular. Essa dinâmica tem o intuito de proteger   os interesses da coletividade sobre o particular. Contudo, tais poderes são limitados pela lei com base no princípio da legalidade, visando impedir abusos e arbitrariedades de autoridades. Deste modo, o administrador público exerce seus poderes conforme o regramento do sistema jurídico vigente, não podendo a autoridade ultrapassar os limites que a lei traça à sua atividade, sob pena de ilegalidade.  Logo,  a Administração Pública não possui autonomia da vontade. Por outro lado, Maria Sylvia Zanella Di Pietro aponta que:

Em outras hipóteses, o regramento não atinge todos os aspectos da atuação administrativa; a lei deixa certa margem de liberdade de decisão diante do caso concreto, de tal modo que a autoridade poderá optar por uma dentre várias soluções possíveis, todas válidas perante o direito. Nesses casos, o poder da Administração é discricionário, porque a adoção de uma ou outra solução é feita segundo critérios de oportunidade, conveniência, justiça, equidade, próprios da autoridade, porque não definidos pelo legislador. Mesmo aí, entretanto, o poder de ação administrativa, embora discricionário, não é totalmente livre, porque, sob alguns aspectos, em especial a competência, a forma e a finalidade, a lei impõe limitações. Daí por que se diz que a discricionariedade implica liberdade de atuação nos limites traçados pela lei; se a Administração ultrapassa esses limites, a sua decisão passa a ser arbitrária, ou seja, contrária à lei.

Diante do conceito de discricionariedade retratado anteriormente, nota-se que a atuação da Administração Pública não está somente atrelada à lei e sujeita ao controle de órgãos como o judiciário.  Com  a discricionariedade o administrador público possui um mínimo de flexibilidade e liberdade para exercer as suas funções e atividades, podendo utilizar critérios optativos e interpretações visando atender o interesse público e não   os interesses pessoais do agente público. A ausência dessa flexibilidade e liberdade afetaria o desempenho, por exemplo, da empresa estatal, bem como prejudicaria a execução do interesse público, já que, impor condutas imutáveis faz com que não haja possibilidades de agir em situações imprevistas pela lei. 

Vale destacar que há cinco elementos do ato administrativo: (i) sujeito, somente quem a lei conferiu competência pode praticar o referido ato; (ii) objeto, se refere ao que se pretende com o ato; (iii) forma, os atos, geralmente, são vinculados, pois a lei a define previamente, (iv) motivo, antecede a prática do ato e dá razão de ser; e (v) a finalidade, o ato corresponde sempre ao interesse público. Ademais, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro (apud Chagas, 2020, p. 97), a discricionariedade opera em quatro campos: “(i) na existência de lei expressamente permitindo à Administração Pública que adote determinada conduta; (ii) na lei dotada de dicção aberta e inconclusiva, incapaz de prever todas as condutas e consequências; (iii) no estabelecimento de competência para a prática de determinado ato, sem que haja definição do momento, nem da forma de sua prática; (iv) no emprego dos chamados conceitos jurídicos indeterminados, a partir do uso de expressões genéricas”.

Os conceitos retratados anteriormente são aplicados também nas sociedades de economia mista que se diferem das empresas privadas, pois estas atuam visando atingir os interesses e convicções pessoais a fim de driblar a concorrência e lucrar, já aquelas devem atuar não somente visando o lucro e driblar a concorrência, mas conforme a autorização da lei e o seu objeto social, previsto no estatuto, que define o rumo da empresa. 

Em relação a sociedades de economia mista, ela é composta pelo Estado como sócio majoritário para que o controle seja mantido, já que, há a maioria das ações com direito a voto, e pelo capital privado como sócio minoritário. Sendo que essa sociedade, segundo Modesto Carvalhosa (apud Tomazette, 2017, p. 142), tem como objeto social à prestação de serviço público ou exploração de atividades  econômicas por meio de negócios jurídicos privados e de relações extracontratuais de natureza privada, sempre visando atender o interesse público e em conformidade com a lei societária. 

Segundo o artigo 116 da Lei 6.404,   o “acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social”, deste modo os poderes do acionista controlador de uma sociedade de economia mista são vistos como deveres, não podendo agir conforme sua vontade, pois está obrigado a exercer controle sendo que para isso deve praticar condutas que sejam condizentes com a função social da sociedade de economia mista, bem com agir em conformidade à lei a fim de atender o objeto principal que justificou a sua criação, ou seja, o interesse público. Deste modo, se faz importante a aplicação da governança corporativa, já que, tem a finalidade de controle dos poderes exercidos dentro da sociedade ao ser pautada, segundo Arnoldo Wald (apud Tomazette, 2017, p. 144), pela transparência, integridade, prestação de contas e responsabilidade corporativa.

O acionista controlador da sociedade de economia mista possui os mesmos deveres e responsabilidade do acionista de uma sociedade anônima comum, sendo o interesse público uma característica a mais a ser cumprida. Deste modo, o acionista controlador não possui “carta branca” para exercer seu controle e quando ultrapassa os limites legais e faz abuso de poder, deverá ser responsabilizado conforme previsto no art. 117 da Lei 6.404 “o acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder”, sendo que no seu parágrafo primeiro define as hipóteses de abuso de poder, sendo elas: 

a) orientar a companhia para fim estranho ao objeto social ou lesivo ao interesse nacional, ou levá-la a favorecer outra sociedade, brasileira ou estrangeira, em prejuízo da participação dos acionistas minoritários nos lucros ou no acervo da companhia, ou da economia nacional;

b) promover a liquidação de companhia próspera, ou a transformação, incorporação, fusão ou cisão da companhia, com o fim de obter, para si ou para outrem, vantagem indevida, em prejuízo dos demais acionistas, dos que trabalham na empresa ou dos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia;

c) promover alteração estatutária, emissão de valores mobiliários ou adoção de políticas ou decisões que não tenham por fim o interesse da companhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários, aos que trabalham na empresa ou aos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia;

d) eleger administrador ou fiscal que sabe inapto, moral ou tecnicamente;

e) induzir, ou tentar induzir, administrador ou fiscal a praticar ato ilegal, ou, descumprindo seus deveres definidos nesta Lei e no estatuto, promover, contra o interesse da companhia, sua ratificação pela assembleia-geral;

f) contratar com a companhia, diretamente ou através de outrem, ou de sociedade na qual tenha interesse, em condições de favorecimento ou não equitativas;

g) aprovar ou fazer aprovar contas irregulares de administradores, por favorecimento pessoal, ou deixar de apurar denúncia que saiba ou devesse saber procedente, ou que justifique fundada suspeita de irregularidade.

h) subscrever ações, para os fins do disposto no art. 170, com a realização em bens estranhos ao objeto social da companhia.

As condutas de desvios de finalidade da sociedade e dos abusos de poder retratados representam um prejuízo à discricionariedade, pois ultrapassam a liberdade de atuação nos limites traçados pela lei; tornando as decisões tomadas similares a arbitrariedade, já que  deixam de cumprir o dever de atender os interesses públicos, bem como potencializam a perda financeira. Tais condutas ocorreram em alguns casos concretos como o da Petrobrás, em que o abuso de poder ocorrido estaria previsto no “a” do parágrafo do artigo 117 da Lei 6.404.

Um dos casos da Petrobrás é retratado no Recurso Especial Nº 745.739, em que o acionista minoritário, Porto Seguro Imóveis LTDA, propôs ação em face do acionista majoritário e controlador, Petróleo Brasileiro S/A Petrobras, com a finalidade de condenar a Petrobrás a indenizar a Porto Seguro por supostos prejuízos que lhe teria causado como acionista controlador, pois abusou do seu poder determinando a alienação de quase a totalidade das participações acionárias detidas pela empresa Petroquisa (antiga subsidiária petroquímica da Petrobrás), em troca de títulos imprestáveis do Governo Federal durante as privatizações do governo de Fernando Collor nos anos 90, o que fez com que a Petroquisa tivesse prejuízos ao se  desfazer dos ativo. Este caso é um dos poucos casos que abordam o que  está previsto no artigo 246 da Lei das Sociedades Anônimas, ao tratar do direito dos minoritários de serem reparados pelos danos causados por abuso de poder de uma empresa controladora. 

O julgamento foi favorável à Petrobrás, contudo o relator Ministro Massami Uyeda concluiu que não havia condenação, vencido ou vencedor dadas as circunstâncias do caso, pois a Petrobrás, em 2006, foi incorporada à Petroquisa. Na prática, fez a estatal virar tanto autora quanto credora no mesmo processo, sendo o mais adequado a extinção do processo, no entanto a Ministra Nancy Andrighi apontou que se o colegiado julgasse a causa extinta sem análise de mérito, havia o risco de ocorrer novas ações.

Diante do que foi exposto, apesar dos riscos de   desvios de poder pelo acionista majoritário na sociedade de economia mista, é de suma importância a aplicação da discricionariedade, ou seja, ter alguma liberdade e flexibilidade ao exercer as suas funções e atividades, pois a demasiada aplicação de leis que restringem condutas, faz com que a empresa não consiga acompanhar as mudanças na sociedade devido a atualização da lei não conseguir acompanhá-las no mesmo ritmo, bem como afeta nas escolhas de agir em situações não previstas pela lei. Por outro lado, se faz necessário o cumprimento de condutas dentro das leis e de suas responsabilidades como acionistas, a fim de evitar desvios de interesses e de atos arbitrários pelo Estado, sendo que tais condutas de desvio, no fim, acabam prejudicando não somente as partes envolvidas (acionistas), mas a sociedade como um todo. 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ÁVILA, Humberto. Repensando o “princípio da supremacia do interesse público sobre o particular”. Revista Diálogo Jurídico, Salvador/BA, Centro de atualização jurídica, Ano I – vol. I – n º. 7 – outubro de 2001.

Brasil. Lei nº 6.404 de 15 de dezembro de 1976.

Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Especial Nº 745.739. Plenário. Relator ministro Massami Uyeda. Brasília, J. 28 ago. 2012.

CHAGAS, Gabriel Costa Pinheiro. A discricionariedade administrativa nas empresas estatais (governança corporativa, planejamento e função social). Dissertação de mestrado – Faculdade de Direito, PUC-SP. São Paulo, 2020.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 34ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 246-253.

TOMAZETTE, Marlon. A administração das empresas estatais. In: NORONHA, João Otávio de; FRAZÃO, Ana; MESQUITA, Daniel Augusto (Coordenadores). Estatuto jurídico das estatais: análise da Lei nº 13.303/2016. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
TONIN, Mayara Gasparoto. Sociedades de economia mista e acionistas minoritários. São Paulo: Quartier Latin, 2018. p. 106-132.

Publicado por Larissa Sousa


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