Por Renata Souza Pereira
As sociedades de economia mista possuem uma natureza jurídica complexa, uma vez que são disciplinadas por normas do direito público e princípios e regulamentações do direito privado, de modo que o legislador constituinte definiu no artigo 173, § 1º, inciso II, da Constituição Federal de 1988 que, se obedecidas as premissas de interesse público norteadoras da criação deste instituto jurídico, “os órgãos diretivos da Companhia [pública ou de economia mista] são livres para estabelecer a melhor forma de perseguir seus interesses empresariais, tal como qualquer sociedade anônima, nos termos da Lei 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações, art. 235)” (FERRAZ Junior, 2018, p. 1.346). No mesmo sentido, a Emenda Constitucional nº 19 de 1998 estabeleceu a exigência de sujeição das sociedades de economia mista ao regime jurídico das empresas privadas, de modo a enfatizar a abrangência privatista do regime, incluindo direitos e obrigações civis e comerciais, explicitando a submissão à repressão ao abuso do poder econômico (Ibidem).
Assim, embora a Constituição da República defina como de direito privado a personalidade jurídica da sociedade de economia mista, a atuação dessas companhias é condicionada à disciplina do direito público (DANTAS, 2003, p. 22), havendo, inclusive, diversas decisões de órgãos superiores neste sentido:
“Embora as sociedades de economia mista tenham personalidade de direito privado, o regime jurídico é híbrido, sofrendo influxo do direito público. Assim, o direito a elas aplicado nem sempre é o privado. Essa derrogação parcial é imprescindível para manter a subordinação entre a entidade e o ente que a instituiu, posto atuar como instrumento de ação do Estado.” (STJ – RESP 417794/RS)
“Assim, não se aplicam às empresas públicas, às sociedades de economia mista e a outras entidades estatais ou paraestatais que explorem serviços públicos a restrição contida no art. 173, § 1º, da CF, isto é, a submissão ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias, nem a vedação do gozo de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado (CF, art. 173, § 2º).” (RE 220.906, voto do rel. min. Maurício Corrêa, j. 16.11.2000, P, DJ 14.11.2002)
Dessa forma, seguindo a supremacia do interesse público sobre o privado, seria impossível, ou, minimamente inaceitável, a adoção pura do regime jurídico privado, pois sendo uma entidade da Administração Indireta, a sociedade de economia mista teria de renunciar prerrogativas que permitem a consecução de seus fins. Além disso, permitir a sua atuação “com autonomia de vontade, própria do direito privado, suprimir-se-iam as restrições legais que o direito público impõe e que constituem a garantia fundamental da moralidade administrativa e do respeito aos direitos dos administrados” (Di PIETRO, 1998, p. 315).
Sendo as sociedades de economia mista, essencialmente, instrumentos de atuação do Estado, ou seja, auxiliadoras do Poder Público, constituindo, assim, pessoas jurídicas definidas, segundo o doutrinador Celso Antonio Bandeira de Mello, pela “busca de interesses transcendentes aos meramente privados” (MELLO, 2003, p. 179), cabe ao Estado, direta ou diretamente, deter controle absoluto dessas para assegurar o cumprimento de tal premissa. Portanto, as normas de direito público que ab-rogam parcialmente o direito privado o fazem para garantir o equilíbrio entre supremacia da Administração e a liberdade de atuação característica das pessoas jurídicas de direito privado (Di PIETRO, 1998, p.315).
A partir da definição supra apresentada da natureza jurídica dupla da sociedade de economia mista, entende-se a relevância do tema do presente artigo, o qual se dá pelo estudo do poder de controle externo e a implicação do princípio constitucional do controle externo nas sociedades de economia mista, uma vez que, como as sociedades de economia mista devem ser controladas absolutamente pelo Estado, constitucionalmente, se promove o poder de controle a órgãos externos à sociedade, mesmo em face do princípio da autonomia privada, mantido pelo constituinte de 1988, o mesmo que ampliou o controle externo, não possibilitando limitação do controle pelo Tribunal de Contas da União sobres essas sociedades pela invocação do art. 173, § 1º (DANTAS, 2004, p. 25).
De acordo com a importante obra “Poder de Controle na Sociedade Anônima” dos autores Fabio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho, o poder de controle é “a prerrogativa possuída pelo titular de um poder superior de impor suas decisões sobre o titular de um poder inferior” (COMPARATO, SALOMÃO FILHO, 2013, p. vi). Champaud, por sua vez, define controle como o poder de supervisão e reforma de ações de gestão patrimonial, de forma a guiar a direção das atividades empresariais da companhia (CHAMPAUD, 1962, p.105). Assim, entende-se o poder como algo que reflete, necessariamente, uma hierarquização, não podendo, dessa forma, ser desassociado do papel social de seu titular, pois a autoridade não consiste somente em uma dominação, mas em limites preestabelecidos que garantam que as ações e ordens do controlador sejam consideradas legítimas (DAHRENDORF, 1959, pp. 6-19) (CARVALHO, 2019, p. 66). Ainda, o professor Pedro Alves Lavacchini Ramunno define o controle empresarial como o “poder de titularidade da companhia e que encerra o poder de destinação (em sentido amplo) dos bens e direitos de sua titularidade, os quais normalmente integram o estabelecimento comercial (ou empresarial)” (RAMUNNO, ANO, p. 34)
Além disso, o controle somente pode ser analisado e constatado nos casos concretos, não havendo uma regra geral que o garanta ou defina. Tratando de pessoas de natureza jurídica unicamente privada, por vezes, é difícil a definição de quem é o controlador, pois, a depender dos casos, o acionista majoritário não ocupa essa posição, ou ocupa parcialmente, sendo que outros possuem poderes em diferentes matérias e esferas de decisões, sejam societárias ou empresariais.
“O controle tem um sistema de mensuração que lhe é próprio. Apesar de decorrer de uma circunstância de fato, uma vez identificado, passa a ser economicamente considerado, tanto que pode ser objeto de cessão. Por outro lado, quem aliena o controle de uma sociedade anônima não está a dispor de bens alheios, mas sim de algo que lhe pertence. […] Vê-se, desde logo, que a identificação do controlador é uma questão de fato, aferível segundo as peculiaridades do caso concreto, pois o controle constitui-se, como já anteriormente destacado, em um poder de fato, não havendo regra legal que o garanta.” (CAMPINHO, 2020, pp. 241-246)
O poder de controle deve ser entendido como um “fenômeno geral do qual decorrem as espécies controle interno à sociedade empresária – controle de direito, relacionado à detenção de participação societária – e controle externo – controle de fato, cuja legitimidade não está diretamente relacionada a institutos jurídicos específicos (CARVALHO, 2019, p. 10). Sendo o segundo o objeto de estudo do presente texto, debrucemo-nos em sua conceituação. Comparato define o controle externo como o poder de dominação ab extra em face da sociedade em questão (COMPARATO, SALOMÃO Filho, 2013, p. 73). O controle externo consiste, portanto, “no exercício do poder de controle por entidade estranha à comunhão societária” (CARVALHO, 2019, p. 31).
“o controle externo ganha relevância ao mesmo tempo em que a atividade econômica, em paulatino ritmo de desintegração e desagregação, passa a estruturar-se por intermédio não mais de vínculos societários e de grandes estruturas verticalizadas, mas sim de contratos de colaboração por meio dos quais agentes autônomos celebram relações estáveis e duradouras, vindo a obter substanciais economias de custos de transação.” (Ibidem, p. 31)
Assim, entende-se que o controle externo está intrinsecamente relacionado com o aspecto econômico e financeiro das empresas, de modo que, em regra geral, o controlador externo manifesta influência sobre a companhia visando a obtenção de vantagem financeira própria (MACHADO FILHO, 2018, p. 40). Guilherme Döring Cunha Pereira define os seguintes requisitos de qualificação da influência como controle externo: (i) que a influência seja de ordem econômica; (ii) que a influência compreenda todas as atividades desenvolvidas pela empresa dominada; (iii) que a subordinação seja permanente ou duradoura; e (iv) que a controlada não possa se subtrair à influência dominante sem sérios prejuízos econômicos. (PEREIRA, 1995, p. 14).
Ainda, ao se tratar dos entes da Administração Pública Direta ou Indireta, como é o caso das sociedades de economia mista, o constituinte atribuiu ao poder de controle externo a condição de princípio. Assim, o artigo 70 da Constituição Federal define que o controle externo será exercido pelo Congresso Nacional na fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial das entidades da administração indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, de modo a julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiro, bens e valores públicos da administração direta e indireta. E, devido à supracitada natureza jurídica dupla das sociedades de economia mista e a necessidade de cumprir ao direito público, fica clara a implicação deste controle nessas sociedades.
Celso Antônio Bandeira de Mello, explica, ainda que, por ordem da Constituição Federal, as “sociedades de economia mista – sejam exploradoras de atividade econômica ou sejam prestadoras de serviços públicos […] veem-se colhidas por normas ali residentes que impedem a perfeita simetria de regime jurídico entre elas e a generalidade dos sujeitos de Direito Privado” (MELLO, 2003, pp. 186-188).
Além da definição constitucional e principiológica, a atuação do TCU segue os requisitos listados por Guilherme Döring Cunha Pereira e estão englobados nas conceituações apresentadas acima. Assim, entende-se que as sociedades de economia mista sofrem o controle externo pelo TCU, conforme os artigos 70 e 71 da CF. Entretanto, em um primeiro momento, pode parecer que o emprego do controle pelo TCU vá contrariamente ao princípio da autonomia provada, fazendo com que a natureza jurídica privada das sociedades de economia não se mostrasse na prática. Entretanto, tal entendimento contradiz o princípio da unidade constitucional, que estabelece que tanto a autonomia privada quanto o controle externo estão sob o mesmo grau de hierarquia. Além disso,
“à luz do princípio da concordância prática, em que os bens jurídicos envolvidos no problema devem ser considerados, deve prevalecer o controle externo, eis que a norma do art. 71 da CF/88 busca tutelar a boa e regular aplicação dos recursos públicos, por intermédio das diferentes modalidades de controle ali estabelecidas, em última instância, visa resguardar o interesse público, enquanto que o art. 173, § 1º, inserido na ordem econômica e financeira da Lei Maior, visa à garantia da livre concorrência.” (DANTAS, 2004, p. 26)
Portanto, conclui-se que é estabelecido sobre as sociedades de economia mista o controle externo pelo Tribunal de Contas da União, sem que a natureza jurídica privada e, consequentemente, a autonomia privada desse tipo societário sejam violadas , pois o poder de controle está além da sociedade e abarcado pela dupla natureza jurídica das sociedades de economia mista.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
“Alienação do poder de controle acionário”, Guilherme Döring da Cunha Pereira (1995, Saraiva)
“A responsabilidade do controlador externo nas sociedades anônimas – uma análise das diferentes formas de influência por agentes externos sobre o controle societário e o controle empresarial e a responsabilização em caso de abuso do poder de controle externo”, por Leonardo Luiz de Campos Machado Filho
“Class and class conflict in industrial Society”, Ralf Dahrendorf (1959, Stanford)
“Considerações sobre o Controle Externo das Sociedades de Economia Mista e seus Fins Econômicos”, por Waldeck Miquilino da Silva
“Constituição Comentada”, Tercio Sampaio Ferraz Junior [et. al] (2018, Forense)
“Controle Empresarial Externo”, por Angelo Gamba Prata De Carvalho
“Controle Societário e Controle Empresarial: uma análise da influenciação sobre o controle empresarial pelo Estado Brasileiro”, Pedro Alves Lavacchini Ramunno (2017, Almedina)
“Curso de Direito Administrativo”, Celso Antônio Bandeira de Mello (2003, Malheiros)
“Curso de Direito Comercial – sociedade anônima”, Sergio Campinho (2020, Saraiva)
“Direito Administrativo”, Maria Sylvia Zanella Di Prietro (1998, Atlas)
“Le pouvoir de concentration de la société par actions”, Claude Champaud (1962, Librairie Sirey)
“O Poder de Controle na Sociedade Anônima”, Fabio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho (2013, Grupo Gen)
“O Princípio constitucional do controle externo em face da autonomia privada das sociedades de economia mista”, por Arsenio José da Costa Dantas
“Os limites do controle externo da união sobre as empresas controladas direta ou indiretamente por sociedades de economia mista”, por José Silva de Souza Leal
RE 220.906, voto do rel. min. Maurício Corrêa, j. 16.11.2000, P, DJ 14.11.2002
STJ – RESP 417794/RS voto do rel. min. X, j. aa.bb.cccc, P, DJ aa.bb.cccc
Publicado por Larissa Sousa
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