Por Jade Gomes de Souza
As manifestações judiciais injustas provocam incômodo desde os tempos antigos. Contudo, ao longo das épocas, importantes teóricos elaboraram diferentes perspectivas em relação ao modo com o qual devemos abordá-las. Esse texto, então, pretende fazer uma análise comparativa entre as compreensões de Sócrates e John Locke.
Para Sócrates, só se faria justiça por meio do respeito às leis positivas que são instrumentos de justiça. A segurança jurídica estaria vinculada, por exemplo, ao respeito às leis e às normas constitucionais, infraconstitucionais, aos decretos ou às sentenças do juiz. Por mais injusta que fosse a lei, ela deveria ser respeitada, visto que não a respeitar é praticar uma injustiça que não anula a injustiça presente na lei. Consoante Sócrates, deveríamos nos submeter a lei ainda que esta fosse injusta, mas deveríamos fazer isso partindo de uma postura crítica que nos impelisse a buscar recursos a fim de torná-la justa. Por causa desse posicionamento, Sócrates é tido como conservador, já que a justiça, para ele, é feita conservando o sistema e não quebrando-o ou ignorando as leis.
Dentre os argumentos defendidos por Sócrates, no diálogo Criton de Platão, constam os seguintes: “(…) nem mesmo retribuir a injustiça com a injustiça, como pensa a multidão, pois o procedimento injusto é sempre inadmissível” e “em suma, não devemos retribuir a injustiça, nem fazer mal a pessoa alguma, seja qual for o mal que ela nos cause”. Desta forma, fica claro que Sócrates era contra o desrespeito às leis, ou às decisões judiciais injustas, mas apenas porque acreditava que a prática de qualquer ato injusto era inadmissível
Entretanto, para Locke, o Estado – que tem por função conservar e regular à propriedade, organizar a força comum interna, defender o estado contra inimigos externos e garantir bens públicos – não cria direitos, mas regula o que já temos, ou seja, é o Estado mínimo que regula o direito natural (vida, propriedade e liberdade, basicamente). Dessa forma, se o Estado não cumpre com a sua finalidade, que é regular e proteger o direito natural dos seres humanos, ele perde a razão de ser e, em vista disso, dissolver suas instituições e anular suas leis positivas se torna uma realidade possível. Isso porque, para Locke, apenas delegamos a liberdade natural, como se fosse uma procuração, e não alienamos tal liberdade como outrora argumentava Hobbes, De acordo com Locke:
A razão por que os homens entram em sociedade é a preservação de sua propriedade; e o fim a que se propõem quando escolhem e autorizam um legislativo é que haja leis e regulamentos estabelecidos, que sirvam de proteção e defesa para as propriedades de todos os membros da sociedade, para limitar o poder e moderar a dominação de cada parte e de cada membro da sociedade.
John Locke, Segundo tratado do governo civil (Parágrafo 222)
De acordo com Locke, ainda em seu parágrafo 222, “cada vez que os legisladores tentam tomar ou destruir a propriedade do povo, ou reduzi-lo à escravidão sob um poder arbitrário” colocam o povo em um estado de guerra e que, em vista disso, o povo fica “dispensado de qualquer obediência e é então deixado ao refúgio comum que Deus deu a todos os homens contra a força e a violência”.
A partir desta perspectiva, o desrespeito de leis ou decisões judiciais injustas pode ser visto como um direito das pessoas. O Estado tem por finalidade, como outrora afirmou Locke, assegurar direitos aos indivíduos e não cumprir com essa função faz com que ele perca sua razão de ser. Infere-se afirmar que a desobediência é o povo exercendo o controle da constitucionalidade.
Na história, isso pode ser constatado através da atuação de grandes líderes que, empregando a desobediência civil, visavam modificar a legislação e as práticas governamentais, em busca dos direitos sociais, políticos e econômicos. Dentre esses atores, encontra-se Gandhi, líder político e religioso do povo indiano, que colocou em prática a desobediência civil e instigou o povo a segui-lo, o que conferiu a independência da Índia do Reino Unido. Para o líder indiano “A resistência civil é o meio mais eficaz de exprimir a angústia da alma e o mais eloquente para protestar contra a manutenção do poder de um Estado nocivo”.
Outro ator importante foi Henry David Thoreau que se negou a cumprir as suas obrigações tributárias desobedecendo à lei de seu Estado com a finalidade de preservar a paz, uma vez que o imposto que se recusou a pagar era destinado a financiar a guerra contra o México. Em consequência de sua desobediência, Thoreau foi preso produzindo, na prisão, sua grande obra “A Desobediência Civil”. Além disso, outro importante líder que protagonizou grandes mudanças nos Estados Unidos entre os anos 1950 e 1960, conquistando direitos políticos e sociais, foi Marthin Luther King que, por meio das campanhas de desobediência civil, levou a Suprema Corte a decidir contra as leis estaduais que negavam a igualdade racial.
A desobediência civil, dessa forma, deve ser entendida como a prática adotada pelos membros da sociedade civil frente ao poderio do Estado, interpelando normas ou decisões originárias de seus representantes. Isso ocorre por meio de ação ou omissão desobediente à ordem jurídica, mas dentro dos princípios da cidadania, com a finalidade de impulsionar a opinião pública para reforma ou revogação daquelas normas. Vale ressaltar que essa prática não visa romper com todas as instituições, mas pretende resistir às normas de natureza não democráticas, em situações ocasionais e limitadas.
O posicionamento de David Thoreau, que fundamenta a desobediência civil, é o de que o cidadão só tem o dever moral de obedecer às leis se os legisladores produzirem leis justas. Desta forma, o desrespeito às leis injustas confere muito mais impacto social do que simplesmente obedecê-la, como acreditava Sócrates.
Referencias
Henry David Thoreau. A desobediência civil. Penguin; 1ª edição, 2012.
John Locke. Segundo tratado do governo civil. Editora Vozes. Obra em dominio público acessivel atraves do link http://www.xr.pro.br/if/locke-segundo_tratado_sobre_o_governo.pdf acessado em 11 de novembro de 2021
Platão. Diálogos Platônicos, Críton (o Dever). Edipro, 2019, 2ª Ed. Obra em dominio público acessivel atraves do link https://www.livrosgratis.com.br/ler-livro-online-19871/criton-o-dever acessado em 11 de novembro de 2021
Publicado por Jade Gomes de Souza
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