Por Matheus Tomé
A CPFL Comercialização de Energia Cone Sul (Cone Sul), subsidiária integral da CPFL Comercialização Brasil S.A. (CPFL Brasil), que, por sua vez, é subsidiária integral da CPFL Energia S.A. (CPFL-E), sagrou-se vencedora do leilão de desestatização da Companhia Estadual de Transmissão de Energia Elétrica (CEEE-T), controlada pela Companhia Estadual de Energia Elétrica Participações (CEEE-PAR), sociedade de economia mista sob controle acionário do Estado do Rio Grande do Sul.
Segundo informações públicas do balanço financeiro, resultado do quarto trimestre de 2020 e o patrimônio líquido, a Cone Sul não possui recursos financeiros necessários para efetuar o pagamento de seu lance (aproximadamente, R$ 2,67 bilhões). Decerto que, independentemente da reorganização societária para capitalização, seja essa pelo aumento de capital da CPFL Brasil pela CPFL-E e posteriorcapitalização da Cone Sul pela CPFL Brasil ou outro meio, diante do sobrepreço pago, é importante o estudo de aspectos societários e fiscais da privatização da sociedade de economia mista em exame, especialmente quanto à legitimidade do aproveitamento fiscal da mais-valia de ativos e do ágio por rentabilidade futura (goodwill) apurados na aquisição das ações da CEEE-T
Acerca do tratamento da mais-valia dos ativos e do goodwill, com o advento das Leis nº 11.638, de 28.12.2007, e 11.941, de 27.05.2009, que introduziram alterações na Lei nº 6.404/76 (Lei das S/A) a fim de adaptar as demonstrações financeiras brasileiras às práticas contábeis internacionais, o custo de aquisição de participação societária avaliada pelo valor do patrimônio líquido passou a ser decomposto em (i) valor patrimonial do investimento adquirido (CEEE-T); (ii) mais-valia (ou menos-valia) de ativos líquidos; e (iii) ágio por rentabilidade futura (goodwill) (ou ganho por compra vantajosa).
Mais do que isso, pelos critérios estabelecidos pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), mediante o Pronunciamento Técnico CPC 15 (R1) (Combinação de Negócios), deve-se determinar o valor justo dos ativos líquidos da investida, reconhecendo-se a mais-valia (ou menos-valia) correspondente à diferença entre o referido valor justo e o valor patrimonial dos mesmos na data da aquisição da participação societária. Caso o valor de aquisição da participação societária seja maior do que a parte do adquirente no valor justo dos ativos líquidos, a diferença corresponderá ao goodwill (se menor, a um ganho por compra vantajosa). Nesse sentido, ao tratar da natureza e origem da mais-valia e do goodwill, Eliseu Martins, Ernesto Rubens Gelbcke, Ariovaldo dos Santos e Sérgio de Iudícibus esclarecem:
“Já comentamos que a diferença entre o custo inicial do investimento em coligada ou controlada em conjunto e o valor patrimonial da participação do investidor pode ter origem por conta de até dois fatores:
1.A parte do Investidor na diferença entre o valor justo dos ativos líquidos da investida e o valor patrimonial dos mesmos na data da obtenção da influência ou controle conjunto. Essa diferença, se positiva, é chamada de Mais-valia de Ativos Líquidos e, se negativa, de Menos-valia de Ativos Líquidos.
2. Diferença entre o custo do investimento no reconhecimento inicial, que normalmente corresponde ao valor de aquisição da participação adquirida se for esse o evento que levou à obtenção da influência ou do controle conjunto, e a parte do investidor no valor justo dos ativos líquidos da investida. Essa diferença, se positiva, é chamada de Ágio por Rentabilidade Futura (Goodwill) e, se negativa, de Ganho por Compra Vantajosa.” (grifos do colunista).
Assim, a análise histórica da legislação societária e tributária revela que, com advento das Leis nº 11.638/07 e 11.941/09, houve a ruptura entre o critério fiscal previsto no Decreto-lei nº 1.598, de 26.12.1977 (em sua redação original) e o critério contábil, atinentes à determinação do fundamento econômico do ágio, assim entendida a diferença positiva entre o custo de aquisição da participação societária e o valor de seu patrimônio líquido. Isso porque, antes da entrada em vigor das referidas leis, enquanto vigente o § 2º do artigo 20 do Decreto-lei nº 1.598/77, havia certo consenso entre os doutrinadores de que o “fundamento econômico” do ágio correspondia ao motivo que levou o adquirente/investidor a pagar aquele “sobre-valor” na aquisição de determinada participação societária.
Como bem observa Luís Eduardo Schoueri, a diferença nos preços de mercado justifica-se em função do ponto de vista subjetivo do comprador, e não do vendedor. Outrossim, não interessa, para efeitos legais, a razão pela qual a CEEE-T concordou com o preço, mas apenas o porquê de a Cone Sul se dispor a pagar tal montante. Afinal, o ágio será contabilizado pelo último, e, portanto, é a característica subjetiva do momento da aquisição que será relevante para a fundamentação do ágio, decerto que os fundamentos do ágio se basearem nos possíveis motivos determinantes da fixação do preço de compra das participações societárias em outras empresas, relevante é identificar os motivos determinantes presentes nos incisos I e II do § 2º do art. 385 do RIR, de modo a diferenciá-los.
Deste modo, o fundamento do ágio do investimento na desestatização, de que trata o § 2º do artigo 20 do Decreto-lei nº 1.598/77, era algo que se situava na perspectiva da Cone Sul, e não do alienante da participação societária, refletindo a sua motivação de adquiri-la por determinado preço superior ao valor de seu patrimônio líquido. Nesse contexto, cabia à sociedade adquirente indicar em sua contabilidade o motivo determinante (“fundamento econômico”) que a levou a pagar um ágio pela participação societária adquirida, dentre aqueles previstos no § 2º do artigo 20 do Decreto-lei nº 1.598/77, a saber: (i) “valor de mercado de bens do ativo da coligada ou controlada superior ou inferior ao custo registrado na sua contabilidade”; (ii) “valor de rentabilidade da coligada ou controlada, com base em previsão dos resultados nos exercícios futuros”; ou (iii) “fundo de comércio, intangíveis e outras razões econômicas”.
Do ponto de vista tributário, enquanto vigente o chamado Regime Tributário de Transição (RTT) instituído pelos artigos 15 a 24 da Lei nº 11.941/09, os novos métodos e critérios contábeis não tinham qualquer efeito para fins de apuração das bases de cálculo, uma vez que as mesmas deviam ser determinadas com base nos métodos e critérios contábeis vigentes em 31.12.2007 (Lei nº 11.941/09, artigo 16) , de modo que o tratamento do ágio continuava a ser aquele ditado pelo artigo 20, § 2º, do Decreto-lei nº 1.598/77, combinado com os artigos 7º e 8º da Lei nº 9.532/97. Esse cenário mudou com o advento da Lei nº 12.973, de 13.05.2014 que, dentre outras providências, adaptou a legislação tributária às inovações introduzidas na legislação societária e nas normas contábeis pelas Leis nº 11.638/07 e 11.941/09, revogando o RTT.
Ao tratar da matéria em análise, a Lei nº 12.973/14 revogou o § 2º do artigo 20 do Decreto-lei nº 1.598/77 e alterou a redação desse dispositivo legal para alinhá-lo aos critérios fiscais e contábeis de determinação e mensuração da mais-valia e do goodwill, “verbis”:
“Art. 20. O contribuinte que avaliar investimento pelo valor de patrimônio líquido deverá, por ocasião da aquisição da participação, desdobrar o custo de aquisição em:
I – valor de patrimônio líquido na época da aquisição, determinado de acordo com o disposto no artigo 21; e
II – mais ou menos-valia, que corresponde à diferença entre o valor justo dos ativos líquidos da investida, na proporção da porcentagem da participação adquirida, e o valor de que trata o inciso I do caput; e
III – ágio por rentabilidade futura (goodwill), que corresponde à diferença entre o custo de aquisição do investimento e o somatório dos valores de que tratam os incisos I e II do caput.
(…)
§ 5º A aquisição de participação societária sujeita à avaliação pelo valor do patrimônio líquido exige o reconhecimento e a mensuração:
I – primeiramente, dos ativos identificáveis adquiridos e dos passivos assumidos a valor justo; e
II – posteriormente, do ágio por rentabilidade futura (goodwill) ou do ganho proveniente de compra vantajosa. (…)” (grifos do autor).
Como se pode observar, o critério previsto no § 5º do artigo 20 do Decreto-lei nº 1.598/77 confere um caráter “residual” ao ágio por rentabilidade futura (goodwill), ao determinar que o goodwill corresponde “à diferença entre o custo de aquisição do investimento e o somatório dos valores de que tratam os incisos I e II do caput”, ou seja, à soma do valor do patrimônio líquido (inciso I) e da mais ou menos-valia (inciso II). Esse critério de determinação e mensuração do sobrevalor pago na aquisição de participação societária, avaliada pelo método de equivalência patrimonial (MEP), encontra-se alinhado com os critérios contábeis estabelecidos no Pronunciamento Técnico CPC 15 (R1) (Combinação de Negócios); outrossim, a desestatização da CEEE-T tem tratamento dado à mais-valia e ao goodwill prescrito nos artigos 20 e 22 da Lei nº 12.973/14.
Note-se que o tratamento fiscal da mais-valia e do ágio por rentabilidade futura (goodwill) previsto nos artigos 20 e 22 da Lei nº 12.973/14 não destoou por completo daquele previsto nos artigos 7º e 8º da Lei nº 9.532/97, de modo que (i) tratando-se de mais-valia, no caso de incorporação, fusão ou cisão, o saldo existente na contabilidade na data da aquisição da participação na sociedade de economia mista em exame passa a integrar o custo do bem ou direito que lhe deu causa para fins de depreciação, amortização, exaustão e apuração do ganho ou perda de capital no momento em que ocorrer a sua baixa ou liquidação; e (ii) tratando-se de ágio por rentabilidade futura (goodwill), ocorrendo a absorção do patrimônio da CEEE-T pela Cone Sul, o saldo existente na contabilidade na data da aquisição da participação societária pode ser excluído das bases de cálculo, para cada mês do período-base.
Além disso, vale salientar que a Lei nº 12.973/14 determina, em seus artigos 20 e 22, que o tratamento da mais-valia e do goodwill prescrito nesses dispositivos legais é aplicável apenas à aquisição de participação societária entre “partes não dependentes”, afastando, assim, a possibilidade de aproveitamento fiscal do chamado “ágio interno” ou “ágio em si mesmo”. Deste modo, no caso em exame, não há que se falar em aquisição de participação societária entre partes dependentes, tendo em vista que, como mencionado no início deste trabalho, a CEEE-T pertence ao grupo CEEE, que, por sua vez, é controlada pelo governo do Rio Grande do Sul, logo é inquestionável que a aquisição das ações daquela sociedade será feita de terceiro não relacionado.
O artigo 24 da Lei nº 12.973/14, a seu turno, prescreve que o disposto nos artigos 20 e 22 “aplica-se inclusive quando a empresa incorporada, fusionada ou cindida for aquela que detinha a propriedade da participação societária”. Neste ditame, é oportuno observar que, no tocante à mais-valia de ativos, o “caput” do artigo 20 da Lei nº 12.973/14, regulamentado pelo inciso I do artigo 186 da Instrução Normativa RFB nº 1.700, de 14.03.2017, determina que nos casos de incorporação, fusão ou cisão a mesma pode ser considerada como “integrante do custo do bem ou direito que lhe deu causa, para efeito de determinação de ganho ou perda de capital e do cômputo da depreciação, amortização ou exaustão”.
Vê-se que a regra inserta no artigo 20 corresponde, em sua essência, à do inciso I do artigo 7º da Lei nº 9.532/97, segundo o qual o ágio fundamentado no “valor de mercado de bens do ativo da coligada ou controlada” devia ser contabilizado “em contrapartida à conta que registre o bem ou direito que lhe deu causa”. Ou seja, tanto o artigo 7º, inciso I, da Lei nº 9.532/97 como o artigo 20, “caput”, da Lei nº 12.973/14 partem da premissa de que na incorporação, fusão ou cisão há o “encontro” da mais-valia com os bens ou direitos do ativo da coligada ou controlada que lhe deram causa, pois de outro modo não seria possível escriturar a mais-valia como custo de tais bens ou direitos.
Em se tratando de uma operação societária “simples”, envolvendo apenas as sociedades adquirente e adquirida desestatizada, a qual possui em seu patrimônio o bem ou direito que deu causa à mais-valia, a aplicação do artigo 20 da Lei nº 12.973/14 não parece trazer ter implicação. Contudo, nas situações que envolvam a aquisição de uma Holding Company (p.ex. CPFL-E), ou mesmo de uma empresa operacional também detentora de participações em diversas sociedades operacionais (p.ex. CEEE-PAR), as quais, por sua vez, também detêm participações societárias, o cumprimento daquele dispositivo legal pode revelar-se inviável na prática.
Tomemos por base o caso concreto. A adoção dos novos critérios contábeis de reconhecimento e mensuração da mais-valia e goodwill, que foram encampados pelas normas tributárias (Decreto-lei nº 1.598/77, artigo 20, § 5º), implicou a determinação do valor justo não só dos ativos líquidos detidos pela CPFL-E, mas também daqueles detidos por todas as investidas, diretas e indiretas, dessa sociedade, como o Cone Sul. Se se entender que o artigo 20 da Lei nº 12.973/14, em toda e qualquer situação, impõe como condição do aproveitamento fiscal da mais-valia o seu “encontro” efetivo com o bem ou direito que lhe deu causa, o aproveitamento da totalidade da mais-valia no caso concreto dependeria da incorporação da CEEE-PAR pela CPFL-E e de todas as investidas diretas e indiretas dessa companhia, que sejam titulares dos bens e direitos que deram causa à mais-valia.
Muito embora ao colunista não pareça que a intenção do legislador tenha sido pôr fim aos conglomerados econômicos, condicionando o aproveitamento fiscal da mais-valia à incorporação, fusão ou cisão de todas as coligadas e controladas diretas e indiretas da sociedade adquirida, não se pode olvidar que a redação do artigo 20 da Lei nº 12.973/14 permite essa conclusão, ao prescrever que para fins de depreciação, amortização, exaustão e apuração do ganho ou perda de capital deve ser considerado o custo “aumentado” pelo valor da mais-valia do bem ou direito que lhe deu causa.
É bem verdade que o § 1º do artigo 20 da Lei nº 12.973/14, ao incorporar a regra do § 2º do artigo 7º da Lei nº 9.532/97, prevê uma situação em que não há a transferência do bem ou direito que deu causa à mais-valia para o patrimônio da pessoa jurídica que absorver a outra, no caso de cisão. Como visto, prescreve o § 1º do artigo 20 que “se o bem ou direito que deu causa ao valor de que trata o caput não houver sido transferido, na hipótese de cisão, para o patrimônio da sucessora, esta poderá, para efeitos de apuração do lucro real, deduzir a referida importância em quotas fixas mensais e no prazo mínimo de 5 (cinco) anos contados da data do evento”.
Contudo, não parece que seja possível extrair desse dispositivo legal o entendimento de que o mesmo tratamento deve ser aplicado nos casos de incorporação e fusão das quais não resulte o “encontro” no mesmo patrimônio da mais-valia e do bem ou direito que lhe deu causa. Pelo contrário. Se considerarmos que os parágrafos expressam aspectos complementares ou exceções às normas enunciadas no “caput” dos artigos, conforme previsto no artigo 11, inciso III, alínea “c”, da Lei Complementar nº 95, de 26.02.1998, se reconheceria que o § 1º do artigo 20 da Lei nº 12.973/14, ao tratar de uma situação específica em que o bens ou direito que deu causa à mais-valia não é transferido na operação societária, contempla uma exceção à regra geral do “caput” desse dispositivo legal, reforçando o entendimento de que o aproveitamento da mais-valia depende do seu “encontro”, num mesmo patrimônio, com os bens ou direitos que lhe deram causa.Diante disso, para fins deste estudo, parece ser viável a adoção de interpretação mais conservadora do artigo 20 da Lei nº 12.973/14 no sentido de que atualmente é condição para o aproveitamento fiscal da mais-valia a transferência dos bens e direitos que lhe deram causa, em decorrência da operação de desestatização, reunindo-se no mesmo patrimônio os referidos bens e direitos e a correspondente mais-valia. E, por fim, pelas características da operação em análise (aquisição de participação societária no âmbito de leilão de privatização), é certo que não haverá muita margem para questionamento no que diz respeito ao atendimento das condições extraídas do artigo 20 do Decreto-lei nº 1.598/77, em sua redação atual, e dos artigos 20 e 22 da Lei nº 12.973/14, quais sejam, a aquisição de participação societária entre “partes não dependentes” (Cone Sul e CEEE-T) e o efetivo “sacrifício patrimonial” da adquirente das ações.
Publicado por Larissa Sousa
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