A espiritualidade, em sua essência mais pura, é silenciosa. Ela nasce no recuo, na escuta, no reconhecimento daquilo que nos ultrapassa, seja um deus, um orixá, um guia, um mistério. No entanto, o que se vê com frequência crescente em templos, terreiros, igrejas e centros espirituais é o barulho do ego gritando mais alto que o sagrado.
E quando o ego se senta no trono do altar, a espiritualidade é empurrada para o porão.
Há uma geração de líderes religiosos que não busca mais conexão, busca plateia. O culto não é mais ao divino, mas à própria imagem. Redes sociais inundadas de poses performáticas, falas rebuscadas para impressionar, rituais que parecem mais desfile de poder do que expressão de fé, tudo cuidadosamente encenado para manter a ilusão: a de que são “escolhidos”, “evoluídos”, “melhores”.
Não são.
São apenas bons atores, e pior: alguns nem isso. São os donos do templo, donos da verdade, donos da palavra final. Não admitem ser questionados, porque o que está em jogo não é a orientação espiritual, é a manutenção do controle. E o controle, para esses ególatras de branco ou de colar, é o único deus que realmente veneram.
O egoísmo que se disfarça de doutrina
A doutrina vira armadura. Um discurso moralista aqui, uma ameaça espiritual ali, e pronto: criou-se a prisão perfeita. Seguidores fiéis são doutrinados a acreditar que qualquer dúvida é desrespeito, que toda crítica é inveja, que ir embora é se perder do caminho,mas o caminho verdadeiro não prende ninguém. O caminho espiritual de verdade aponta a direção e deseja que você caminhe com liberdade, com consciência, com responsabilidade, mas com autonomia.
O que esses líderes constroem, porém, não são caminhos,são cercas. E cada cerca é vigiada com olhos atentos, onde o olhar de cima tenta convencer de que só há um trajeto possível: aquele que passa por eles. Como se fossem donos do axé, do passe, do milagre, da resposta.
A estética da vaidade
Há também a estética do poder. A vaidade espiritual, uma das formas mais perigosas do orgulho humano, manifesta-se com trajes suntuosos, títulos pomposos, hierarquias rígidas e ostentação disfarçada de tradição. Cada fio do colar parece gritar “olhem para mim”, cada altar decorado é mais para os olhos do visitante do que para o coração dos guias.
E enquanto exibem suas coroas, esquecem que os verdadeiros reis espirituais são aqueles que abaixam a cabeça para ouvir.
Muitos desses líderes não são ignorantes, são conscientes do próprio jogo. Sabem que manipulam, que exageram, que distorcem,mas não ligam. Estão apaixonados demais por seus tronos, suas palmas, seus “pai”, “mãe”, “guru”, “pastor”, “sacerdote”.
A necessidade de ser reconhecido se sobrepõe à responsabilidade de guiar. A multidão que segue o brilho e não a luz
Mas por que ainda seguem essas pessoas?
Porque o ser humano (em sua fragilidade mais profunda) muitas vezes prefere alguém que fale com autoridade do que alguém que fale com verdade. A dor espiritual cria um vácuo, e qualquer um que preencha esse vazio com segurança, mesmo que falsa, será visto como salvador.
É mais fácil acreditar em quem diz “eu sou o caminho” do que enfrentar o silêncio e encontrar o seu.
Os seguidores não são bobos. Muitos enxergam, muitos sentem,mas a dependência emocional, o medo de sair, o trauma religioso, tudo isso amarra. E o líder narcisista alimenta essas amarras com frases feitas, promessas de evolução, ameaças de karma.
É a religião do medo. Do “se sair, vai adoecer”, do “se questionar, vai perder o axé”, do “quem não está comigo, está contra o orixá”.
Mentira.
O orixá, o Deus, o sagrado, não é egoísta. Não é ciumento. Não é manipulador. Quem é, é o líder que se acha mais importante que o próprio mistério que diz representar. Tal doutrina serve para qualquer religião.
A morte da escuta, o enterro da humildade
Onde estão os líderes que escutam mais do que falam? Onde estão os que duvidam de si mesmos antes de duvidar do outro? Onde estão os que reconhecem que ser guia é carregar o peso do exemplo, não o brilho da fama?
Foram ofuscados. Silenciados. Muitos existem, sim, e resistem, mas não viralizam. Não aparecem nos cortes de podcast. Não fazem rituais de três horas com luzes coloridas. Estão nos cantos. Nos bastidores. Nos olhos atentos que observam tudo isso com tristeza, mas com firmeza.
A espiritualidade é, e sempre será, um espaço de retorno ao essencial. E o essencial é simples. É discreto. É profundo.
É tudo aquilo que o ego odeia ser.
Clube dos Favoritos, Clube dos Esquecidos
Outro sintoma visível do ego inflado em muitos líderes religiosos é a criação de um pequeno “clube de favoritos”. São sempre os mesmos filhos ou seguidores chamados para os cargos de confiança, os elogios públicos, os convites especiais. São os que recebem atenção, afeto, e proteção espiritual, como se o merecimento estivesse ligado à bajulação.
Enquanto isso, os outros, os que não performam devoção incondicional ou não agradam ao gosto pessoal do líder, vão sendo silenciosamente empurrados para as margens. São esquecidos, ignorados, excluídos de rituais, de aprendizados, de oportunidades. E o que era para ser uma casa espiritual vira um ambiente de competição afetiva, onde só permanece inteiro quem sabe agradar, não aos guias, mas ao ego de quem se diz seu intérprete.
O sagrado não precisa de platéia
O que resta, então, quando o ego toma o lugar do espírito? Resta um vazio disfarçado de grandeza. Resta uma liderança que impõe medo no lugar de respeito, que exige devoção cega em vez de consciência crítica, que se alimenta da dependência dos outros para manter a própria ilusão de poder.
Mas o sagrado não precisa de platéia. O sagrado se manifesta no silêncio, no acolhimento, na escuta atenta. Ele não grita, não humilha, não exige aplausos. E se alguém precisa ser bajulado, adorado ou temido para conduzir um caminho espiritual, então não está guiando ninguém, está apenas conduzindo um rebanho ao redor do próprio ego inflamado.
É preciso coragem para sair desses espaços. Coragem para reconhecer que o altar virou palco e que a fé foi sequestrada por vaidades humanas, mas também é preciso esperança: porque ainda existem líderes de verdade, guias que não brilham mais do que o caminho, e que entendem que estar à frente é, antes de tudo, saber caminhar ao lado.
A espiritualidade não é sobre obedecer a quem grita mais alto, mas sobre escutar o que vibra mais fundo.
Publicado/Desenhado/Editado por Bruno M.Z.A.S.B.C.
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Parabéns pelo texto, reflexão muito necessária!
“Espiritualidade” que alimenta o ego é ilusão, uma vez que o processo deixa de ser humilde e de acolhimento para se tornar um mecanismo de diferenciação e exclusão simbólica utilizada para conseguir poder.
Muito disso tem influência na cultura de performance que estamos vivendo atualmente, na qual não somos e sim parecemos, o que nos afasta ainda mais da espiritualidade que é a busca por si mesmo sem a performance, em essência.
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