Texto por Artur Ambrósio
Com o recorrente costume acadêmico de se revisitar obras e pensadores de importância ímpar para o desenvolvimento científico do conhecimento nacional, Miguel Reale nos apresenta, sob a forma de uma verdadeira jornada no decorrer da historiografia jurídico-filosófica pátria, uma interessante dissertação acerca dos impactos do pensamento kantiano na academia brasileira. Em ambas as partes de seu trabalho, intitulado como A doutrina de Kant no Brasil – Notas à margem de um estudo de Clóvis Bevilaqua, um necessário revisionismo teórico nos é apresentado com relação a tal matéria, discorrendo de maneira intercalada com a formação do posicionamento acadêmico geral de determinadas figuras históricas centrais, bem como de seus subsequentes embates doutrinários acerca da filosofia kantiana.
Ademais, nota-se inicialmente uma interessante interdisciplinaridade resultante de determinadas áreas do saber humano. Pois além de seu claro perfil jurídico, temos também o impacto geral que esta corrente filosófica causou no espectro cultural do ocidente, haja vista o posicionamento científico da então incipiente burguesia do Brasil Império, que ansiava por uma maior consciência acadêmica:
“Nenhuma doutrina, em verdade, correspondia mais do que a de Kant às aspirações do liberalismo burguês, aos imperativos do individualismo econômico que iam processando o abrandamento do radicalismo rousseauniano nos quadros do ‘Estado de Direito’ segundo os moldes da ‘liberal-democracia’” (REALE, 1949, p. 58).
É perceptível, neste sentido, um ímpeto literário de uma classe de pensadores (ainda em desenvolvimento) que buscava, essencialmente, uma maior autonomia doutrinária, livre de qualquer dependência dogmática que fosse inibir por inteiro o pleno desenvolvimento de sua respectiva produção bibliográfica.
Na realidade, trata-se de um contexto histórico fértil no tocante ao estímulo do desenvolvimento epistêmico, visto em seu mais amplo sentido: há aqui a possibilidade de identificarmos até mesmo uma intercomunicação com o aspecto literário de tal época, especialmente na então cidade de São Paulo. O fortalecimento de ideais como Nação, bem como de todo lirismo dali resultante, instigava por assim dizer os jovens poetas e incipientes pesquisadores:
“Cultura e nacionalidade, eram as ideias força que faziam vibrar o irriquieto Alvares de Azevedo e seus contemporâneos, seduzidos pelo ideal de uma filosofia e uma poesia nacionais, irmãs gêmeas da civilização, ‘várias em sua unidade, unas em sua variedade”’ (REALE, 1949, p. 65).
Diante de todo este conluio de circunstâncias, podemos até mesmo identificar esta predisposição filosófica em determinadas personalidades importantes para a História Nacional. É interessante, portanto, o estudo deste material acadêmico, pois transforma uma época temporalmente distante em um período consideravelmente mais concreto, haja vista a atemporalidade teórica oriunda dos escritos ali formulados.
Lafayette Rodrigues Pereira, notório jurista, advogado, diplomata e político brasileiro – popularmente conhecido como Conselheiro Lafayette – foi Primeiro Ministro do Brasil entre os anos de 1883 e 1884. Destacou-se no ambiente acadêmico em determinadas obras de Direito Civil (em especial sobre Direitos da Coisa e Direito de Família), e possui um interessante escrito denominado de Vindiciae, onde o mesmo estabelece críticas à interpretação de Sílvio Romero – estimado escritor e polímata brasileiro -, quanto à filosofia kantiana. Tal embate, por assim dizer, representa justamente a profundidade conquistada pela pesquisa filosófica em terras brasileiras, demonstrando a sua direta ressonância ao desenvolvimento da jurisprudência enquanto ramo do saber jurídico-científico:
“O kantismo de Lafayette, a que alguns autores fazem sumária referência, ainda não foi, ao que nos parece, objeto de uma análise mais aprofundada: constitui uma posição filosófica que não só se afeiçoa ao seu feitio de humanista cético, como se alicerça em clara apreensão dos motivos essenciais do criticismo transcendental. Na crítica ao ensaio de Silvio Romero, a aceitação do criticismo em seus valores essenciais permite-nos apresentar a Lafayette como um kantista mais coerente, embora ainda preso a certos pressupostos jusnaturalistas” (REALE, 1949, p. 85).
Tal comunicação acadêmica, mesma que derivada essencialmente de um conflito de ideais, reflete diretamente na produção intelectual propriamente dita do país, que alcançava (como dito anteriormente) uma maior autonomia enquanto fonte doutrinária. Mesmo o porquê, a simples contraposição teórica de fundamentos distintos apenas reverbera na leitura daquilo que se é produzido, bem como do diálogo estabelecido entre partes distintas: pois a concordância ou não daquilo que se é defendido corrobora com o pleno amadurecimento epistêmico de uma dada matéria.
Por fim, devemos destacar também aqui todo o compêndio bibliográfico elaborado por Diogo Antônio Feijó, historicamente conhecido como Padre Feijó. Apesar da leve diferença temporal quanto aos demais aqui citados, o mesmo não deixa de ser uma figura importante para o período imperial, não apenas pelo fato do mesmo ter ocupado o cargo de Ministro da Justiça, mas principalmente, por ter ocupado a cadeira de Regente Imperial. Ou seja, além de sua notória atuação executiva, temos também a sua atuação enquanto pensador:
“Três são os trabalhos de natureza filosófica escritos pelo padre Feijó, sob forma de compêndios, trabalhos esses publicados em 1902 por Eugênio Egas no 2° volume de sua obra dedicada ao grande Senador do Império: uma súmula de Lógica; umas Noções Preliminares de Filosofia ou Metafísica, e um compêndio de Filosofia Moral. […] parece-nos que foi o padre Feijó o primeiro a tratar especificamente de questões filosóficas no Brasil.” (REALE, 1949, p. 122/123).
Tamanho era o seu domínio quanto à corrente kantiana que seus escritos partiam do domínio concernente aos juízos sintéticos a priori, conceitos basilares de todo o pensamento kantiano introduzidos na porção inicial da então Crítica da Razão Pura. É, pois, um indício latente da preocupação do referido regente não apenas com aspectos da filosofia prática do pensador alemão, mas também, de uma atenção minuciosa para com os seus respectivos fundamentos metodológicos:
“Às vezes revela o padre Feijó mais preciso conhecimento da doutrina kantista, como quando assinala as verdades matemáticas como ‘princípios a priori puros’ […] distinguindo-os dos ‘a priori’ mistos, ou seja, dos juízos ‘a priori’ nos quais há qualquer termo experimenta, motivo por que se deve proferir a evidência matemática à evidência física no caso de colisão” (REALE, 1949, p. 131).
A profundidade analítica demonstrada pelo padre regente não se limita apenas ao kantismo – de forma alguma. Sua diversidade e riqueza bibliográfica, como apresentado por Reale, também alcançava os domínios da lógica enquanto matéria do saber, metodologicamente expandido-se para a forma pela qual o entendimento é concebido sinteticamente a partir das faculdades da sensibilidade e do raciocínio – dado o trabalho cognitivo que resulta no conhecimento propriamente dito. Mesmo que partindo de um posicionamento kantiano, vários são os seus assuntos:
“A sua Lógica, por exemplo, é mais uma Metodologia, na qual fixa regras sobre observação, classificação, hermenêutica, crítica dos documentos, dos sentidos e a teoria da probabilidade etc., com breve referências à lógica formal.” (REALE, 1949, p. 135).
É evidente que o espírito vigorado nos contextos históricos discorridos acima nada mais representa senão o necessário ímpeto pelo saber filosófico. A própria análise do texto realeano, ora em comento, aponta não apenas para um interessante revisionismo da História da Academia Brasileira, como também, da apresentação de ideias que refletiram diretamente em algo que deve ser revitalizado nos dias de hoje: o querer pelo saber. É, portanto, um valor que carece de uma reanimação diária dentro do debate público, pois a desconsideração da filosofia enquanto o estudo das bases do saber humano (seja ele jurídico ou não), apenas reflete no sacrifício de seu respectivo conteúdo em prol de uma suposta cega (deve-se frisar) atenção pelo âmbito prático de uma funcionalidade social – funcionalidade esta que é tão somente nublada justamente por esta cegueira propedêutica.
Mesmo que inserido em um contexto majoritariamente kantiano – corrente filosófica esta que pode muito bem ser considerada como um ponto central na história da modernidade ocidental -, a ininterrupta busca pelo método, ou seja, a cotidiana e incansável procura por formas de se entender criticamente e tecnicamente alguma matéria, manifesta-se como um costume que deve ser necessariamente revitalizado em função do núcleo didático pátrio. Trata-se, portanto, de um prequestionamento valorativo, levantado em prol de uma narrativa que solapa por inteiro a pesquisa em si dentro dos domínios brasileiros. Pois tal narrativa, além de coordenar em muitos sentidos o próprio descaso e o sucateamento de instituições de ensino e de pesquisa (em um âmbito geral), também impregna o imaginário correspondente de operadores e operadoras do Direito com questões principiológicas de sua própria área de atuação.
Publicado por Isabelly Rodrigues
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