A MODALIDADE DE LEILÃO “STALKING HORSE” NOS PROCEDIMENTOS DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Por Letícia Pasotto

A recuperação judicial (“RJ”) é um procedimento especial que possui a finalidade de superação de crise econômico-financeira de uma empresa, ou eventualmente, um grupo de empresas, de modo que promove a organização empresarial para aplicação de medidas que viabilizam o pagamento de seus créditos. 

Em linhas gerais, o Administrador Judicial (“AJ”), nomeado pelo Juízo Recuperacional, será responsável pela fiscalização do cumprimento das obrigações da Recuperanda — empresa que ajuíza a ação de recuperação judicial, isto é, deverá verificar se o pagamento dos credores está sendo devidamente realizado, bem como deverá monitorar o soerguimento da empresa.

 Caso a empresa Recuperanda não supere sua crise, ou seja, seu passivo permanece superior ao seu ativo, impossibilitando a quitação de suas dívidas, ou ainda, na hipótese de descumprimento de suas obrigações, a recuperação judicial será convolada em falência.

Por isso, para evitar a falência da empresa, o Administrador Judicial ou as Recuperandas poderão propor a alienação de ativos para obtenção de receita a ser destinada ao pagamento dos credores, que poderão consistir em obras de arte, maquinários, imóveis, dentre outros bens, desde que não sejam essenciais para o soerguimento da empresa. 

A alienação geralmente ocorre por meio de leilões, respeitando suas formalidades exigidas, tais como a publicação prévia de edital. Uma das modalidades inovadoras de leilão chama-se stalking horse, que consiste na consideração do primeiro lance oferecido por interessado pelo ativo à venda da empresa em Recuperação Judicial, que será realizado após uma análise da qualidade do ativo (due diligence), para fixação de um preço mínimo do bem, impedindo que sua alienação seja realizada por valores desproporcionais¹. 

O termo stalking horse se refere a uma tática usada na caça, na qual o caçador se esconde atrás de uma imagem de um cavalo para que possa se aproximar de seu alvo². Sendo assim, no contexto processual, a empresa Recuperanda permite que o primeiro lance ofertado garanta a previsibilidade de efetivação do processo competitivo.

Recentemente, em 30 de agosto de 2022, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo proferiu Acórdão que rejeitou o recurso de agravo de instrumento interposto por GRI Koleta Gerenciamento de Resíduos Industriais S.A. na Recuperação Judicial em que este é credor do Grupo Estre. O agravo havia sido interposto em face de decisão que homologou o Plano de Recuperação Judicial, alegando que o processo competitivo previsto no Plano para venda de Unidade Produtiva Isolada (“UPI”), com a modalidade do stalking horse, não concedeu prazo razoável para que todos os credores e interessados pudessem apresentar uma proposta vinculativa tal como o Primeiro Proponente, que é a primeira empresa escolhida para dar o primeiro lance do processo competitivo.

Em síntese, o credor alegou que deveria ter tido o mesmo prazo para acesso aos dados que o Primeiro Proponente. Neste caso, a Orizon Meio Ambiente S.A., em conjunto com a Jive Asset Gestão de Recursos Ltda., apresentou a proposta vencedora para aquisição da UPI, no valor de R$ 840 milhões, ao passo que o credor agravante ofereceu R$ 750 milhões. 

Sendo assim, de acordo com as regras do stalking horse, a UPI em questão apenas poderia ser adquirida por oferta de quantia igual ou superior à ofertada pelo Primeiro Proponente. Este mecanismo atua como um meio de proteção ao soerguimento da empresa, já que o valor fixado pelo primeiro lance deve ser necessariamente cumprido pela empresa proponente. Neste sentido, o Desembargador Relator Franco de Godoi do recurso destacou:

“[…] a possibilidade de um mais aprofundado “due diligence” pelo primeiro comprador é uma das vantagens deste procedimento para atrair um maior número de interessados ao certame, que através do preço mínimo estabelecido pelo “stalking horse” podem precificar o risco envolvido na aquisição da unidade produtora isolada, sem dispensar custos operacionais para a realização de uma auditoria de cognição profunda nos dados da empresa”³.

O stalking horse possui origem no Bankruptcy Code (Código de Falência) do direito norte-americano, e até o momento, não é previsto expressamente na Lei nº 11.101/05 (Lei de Falência e Recuperação Judicial – “LFR”). Entretanto, sua aplicação tem sido aceita jurisprudencialmente em diversas Recuperações Judiciais além da do Grupo Estre mencionado acima. Na RJ do Grupo OI, por exemplo, o consórcio formado pela Claro, Tim e Telefônica Brasil adquiriu os ativos móveis da OI por R$ 16,5 bilhões, oferta vencedora da licitação, utilizada inicialmente como stalking horse⁴. 

Além disso, a aplicação da modalidade de stalking horse, geralmente estabelece a cláusula de break up fee, ou seja, uma multa compensatória a ser paga àquele que ofertou o lance inicial no caso de: (I) haver lance maior que o oferecido, o que implicará na perda da licitação; (II) a Recuperanda descumprir o contrato de stalking horse antes do fechamento da operação; ou (III) a venda não se concretizar até o prazo determinado previamente¹. 

O estabelecimento do stalking horse pode prever ainda o right to match ou o right to top (utilizado, por exemplo, na RJ do Grupo Abengoa), determinando que o Primeiro Proponente possa cobrir eventualmente proposta igual ou superior à ofertada inicialmente, respectivamente, como forma de proteção aos riscos que a empresa que oferta o primeiro lance assume⁵.

Cita-se ainda o caso da RJ do Grupo OAS, que envolvia um contrato de financiamento debtor-in-possession (“DIP”) através do estabelecimento do stalking horse, no valor de R$ 800 milhões, celebrado entre as Recuperandas e a Brooksfield, interessada na realização do negócio jurídico. O Juízo Recuperacional, durante o 1° semestre de 2015, concedeu a oportunidade de manifestação dos credores acerca da operação comercial entre as Recuperandas e a Brooksfield, de modo que poderiam, inclusive, se opor, e os convidou a participarem de audiência de gestão democrática.  Em julho de 2015, o contrato de stalking horse para financiamento DIP foi reconhecido como válido.

Em razão dos diversos recursos interpostos em face da referida decisão, o Juízo Recuperacional convocou a Assembleia Geral de Credores (“AGC”) para ratificar os termos da operação. O Plano de Recuperação Judicial foi aprovado em AGC, sendo que uma das cláusulas previa o valor oferecido pela Brooksfield pela aquisição das ações da Invepar, além de estabelecer a cláusula de right to top, mencionado acima. Posteriormente, o Plano foi devidamente homologado. 

Entretanto, neste caso, a Brooksfield revogou a proposta de aquisição das ações, devido discordância dos acionistas da Invepar quanto às exigências de mudanças no âmbito da governança da empresa. Por fim, a Brooksfield revogou o direito do reembolso dos custos auferidos pela operação. 

Com isso, pode-se dizer que o stalking horse está sendo utilizado e aceito no sistema jurídico, inclusive por recuperações judiciais de grandes grupos econômicos. Vale mencionar que o mecanismo está em conformidade com o princípio de preservação da empresa, dado que a Recuperanda se torna capaz de antecipar o valor de alienação do ativo, além de ser assegurada uma certa estabilidade quando a sua consumação. Em relação ao princípio de preservação da empresa relacionada à alienação de ativos, a doutrina de Marcelo Sacramone cita:

“A alienação garante também o atendimento da preservação da empresa e de sua função social. A aquisição de estabelecimento permite que o arrematante desenvolva a atividade empresarial de modo mais eficiente com o ativo adquirido, com a manutenção de postos de trabalho, fornecimento dos produtos aos consumidores, circulação de riqueza etc.”⁶

Portanto, conclui-se que a modalidade de licitação stalking horse é compatível com a finalidade de soerguimento da empresa em Recuperação Judicial, prevista na Lei de Falência e Recuperação Judicial do ordenamento jurídico brasileiro, já que obriga que o primeiro lance seja efetivamente executado. Ainda que a primeira oferta não seja a vencedora ou não seja devidamente cumprida, é possível estabelecer cláusulas auxiliares como forma de proteção complementar ao êxito das alienações dos ativos das Recuperandas, como é o caso da right to match supramencionada.

REFERÊNCIAS

¹GARCIA, Rodrigo Saraiva Porto. A venda de ativos na recuperação judicial e o contrato de stalking horse. Orientador: Prof. Dr. Maurício Moreira Mendonça de Menezes. 2019. 156 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/bitstream/1/9447/1/Rodrigo%20Saraiva%20Porto%20Garcia_total.pdf. Acesso em: 4 set. 2022.

²FRIMET, Zachary R. Reward the stalking horse or preserve the estate: determining the appropriate standard of review for awarding break-up fees in § 363 sales. Fordham Journal of Corporate & Financial Law, [S. l.], v. 20, p. 461-496, 2015.

³TJ-SP – AI: 22304723420218260000 SP 2230472-34.2021.8.26.0000, Relator: J. B. Franco de Godoi, Data de Julgamento: 30/03/2022, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 30/03/2022

⁴REIS, Thiago. Stalking horse: saiba o que representa no mercado financeiro. [S. l.], 4 set. 2020. Disponível em: https://www.suno.com.br/artigos/stalking-horse/. Acesso em: 4 set. 2022.

⁵BOULOS, Eduardo; CORRADINI, Luiz Eduardo; NAVARRO, Norlan; VILLELA, Victoria. Oportunidades no pós pandemia: os distressed M&As. [S. l.], 2020. Disponível em: https://www.cascione.com.br/panorama-societario-oportunidades-no-pos-pandemia-os-distressed-mas/. Acesso em: 4 set. 2022.

⁶SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 3. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022.

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