“Nós” versus “eles”: o que a Psicologia e o Direito têm a dizer sobre a polarização nas mídias digitais

Por Bruna Valêncio de Jesus Santos

Logo na primeira aula de Sociologia somos ensinados que “o ser humano é um ser social”, conforme afirmava Aristóteles, e não restam dúvidas disso. Se houve uma época que escancarou essa realidade foi a pandemia: segundo um estudo do Ipsos (o 3º maior instituto de pesquisa do mundo), 41% da população mundial afirmou que sua saúde mental piorou um pouco ou muito no último ano, na vida durante a pandemia. Essa porcentagem é ainda pior no Brasil, país em que 53% da população declarou sentir o impacto do isolamento social, um dos mais longos de todos. O próprio diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, reconheceu, em maio de 2020, que “o impacto da pandemia na saúde mental das pessoas já é extremamente preocupante”.   

Mas é errado pensar que sociabilidade quer dizer “ser amigo de todo mundo”. Na verdade, isso significa o contrário: tendemos a formar grupos a partir da interação e do compartilhamento de interesses e objetivos em comum. Para Le Bon, teórico sobre a psicologia de massas, a partir do momento em que os indivíduos se reúnem em grupo, a multidão forma um único ser, com características psicológicas próprias. Segundo ele, isso se dá por três fatores: 

  • Sentimento de poder: quando o indivíduo age “em manada” acredita estar mais seguro porque o grupo o protegerá de possíveis ataques; 
  • Contágio mental: uma vez que um desses indivíduos se posiciona de certa forma, todos no grupo tendem a ser contagiados por esse posicionamento; 
  • Sugestibilidade: capacidade de influenciar os integrantes do grupo a agir de uma maneira que não agiriam fora dele. 

Nos grupos, por esses fatores listados acima, é que são forjados os “vieses”, conceituados pela professora Maria Marinho como atalhos mentais inconscientes e naturalizados que nos levam a uma visão distorcida da realidade. A construção desses “vieses” decorre de diversos mecanismos, como a associação a fortes emoções (viés do afeto), a repetição incessante de uma mesma informação (viés da disponibilidade) e, talvez o mais famoso, a aceitação de uma informação só porque é compatível com a própria opinião (viés de confirmação). 

O problema é quando os integrantes de um grupo desumanizam os de outro, esquecendo que os “outros” também são pessoas como “nós”, com sentimentos e direitos fundamentais. Nesse estágio, passa-se a ver o mundo de forma dicotômica: aqueles que fazem parte do grupo são vistos como iguais, são o “nós”; enquanto aqueles que não têm essas características comuns são os diferentes, o “eles”. 

A essa dinâmica de máxima divergência entre dois grupos opostos é que se chama de polarização e está presente nos mais variados contextos: desde uma partida entre Palmeiras e Corinthians até os embates entre nazifascismo e extrema esquerda. 

Imagem: The Intercept Brasil 

Como bem demonstrado no documentário “O Dilema das Redes” (2020), essa polarização foi acirrada (mas não criada, vale destacar) pelas mídias digitais. Ainda se aplicam os três fatores de Le Bon, pois os grupos formados nas mídias digitais também têm sentimento de poder, contágio mental e sugestibilidade, mas acrescenta-se um novo ingrediente: os algoritmos. Por meio deles, o conteúdo consumido pelo usuário é direcionado de forma personalizada de acordo com suas próprias preferências, criando as chamadas “câmaras de eco” (termo cunhado por Bauman) e o indivíduo é levado a crer que a sua opinião é a única existente e, portanto, a única verdadeira e possível pelo viés de confirmação. 

Esse fenômeno vem causando sérias consequências para a sociedade, a política e, sobretudo, para o Estado Democrático de Direito. A professora Jeanette Hofmann, do Weizenbaum Institut for the Networked Society, de Berlim, evidencia essa relação: “parece que a democracia pode ser avivada com as mídias digitais, mas está sendo enfraquecida por essa relação”. Isso ocorre porque aumentando a polarização, aumenta-se também a intolerância contra opiniões diferentes da sua própria, minando o diálogo saudável e respeitoso, um dos pilares centrais da democracia. Além disso, a disputa entre os polos pelo controle da verdade coloca em xeque as liberdades de expressão e informação, direitos liberais de 1a dimensão que sustentam o Estado Democrático de Direito. Esse processo pode nos ajudar a compreender a formação, durante as eleições presidenciais, de dois blocos bem distintos na rede e a precariedade da mediação entre eles, conforme atestou o Departamento de Análise de Políticas Públicas (DAPP) da FGV, em levantamento realizado durante as eleições e ilustrado no gráfico abaixo:

Imagem: FGV/DAP 

Você deve estar se perguntando: estamos em um beco sem saída? Como podemos garantir a manutenção da democracia no ambiente digital? Infelizmente, ainda não há uma resposta clara para essas perguntas, mas muito se debate sobre o assunto. 

Certos grupos defendem que o problema são as mídias digitais e, assim, boicotando-as, deletando-as e proibindo-as, ele seria resolvido. Contudo, para a maioria dos pesquisadores no tema, as mídias digitais vieram para ficar e, mesmo que fossem banidas, não solucionariam completamente a questão, já que, como explicitado acima, a polarização é um fenômeno psicológico próprio ao ser humano e não meramente digital. 

Outra solução levantada é a regulamentação do ambiente virtual pela produção de legislação específica. Novamente, ainda que essa seja uma medida de contenção que funcione parcialmente, a exemplo do Marco Civil da Internet (lei nº 12.965/2014) e da Lei Geral de Proteção de Dados (lei nº 13.709/2018), ela é muito limitada porque não pode determinar quem está certo ou errado (caso contrário seria uma afronta à liberdade de expressão) e não consegue acompanhar a rapidez com que mudanças nesses softwares acontecem. 

As perguntas continuam sem respostas, mas, por enquanto, é importante levar em consideração o que a Psicologia e o Direito têm a dizer sobre o fenômeno da polarização das mídias digitais e, mediante suas contribuições, levantar soluções mais eficazes para unir “nós” e “eles”. 

Fontes 

AMARAL, Vera Lúcia do. A dinâmica dos grupos e o processo grupal. Natal, RN: EDUFRN, 2007. Disponível em: http://www.ead.uepb.edu.br/arquivos/cursos/Geografia_PAR_UAB/Fasciculos%20-%20Material/Psicologia_Educacao/Psi_Ed_A10_J_GR_20112007.pdf. Acesso em 05/09/2021.  

BRASIL. Lei Geral de Proteção de Dados – Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm.

BRASIL. Marco Civil da Internet – Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm.

“Covid: saúde mental piorou para 53% dos brasileiros sob pandemia, aponta pesquisa”. Publicado por BBC News Brasil, em 14 de abril de 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-56726583. 

DIAS, Tatiana. ‘O dilema das redes’: sair da internet não vai salvar a internet. Publicado por The Intercept Brasil, em 14 de setembro de 2020. Disponível em: https://theintercept.com/2020/09/14/internet-netflix-redes/.

“Digitalização e Democracia: palestrantes analisam a influência das redes sociais nos processos políticos e na desconfiança nas instituições”. Publicado por FGV DAPP. Disponível em: http://dapp.fgv.br/digitalizacao-e-democracia-palestrantes-analisam-a-influencia-das-redes-sociais-nos-processos-politicos-e-na-desconfianca-nas-instituicoes/.

O DILEMA DAS REDES. Direção: Jeff Orlowski. Gênero: Docudrama. Local/Ano: EUA, 2020. Duração: 89 minutos. 

“Polarização política realmente deteriora as relações familiares, diz pesquisa”. Publicado por Sempre Família, em 26 de novembro de 2018. Disponível em: https://www.semprefamilia.com.br/sociedade/polarizacao-politica-realmente-deteriora-as-relacoes-familiares-diz-pesquisa/.

VIESES NA REDE – Ep. 05: Como neutralizar os vieses na nossa comunicação on-line. Maria Edevalcy Marinho, Instituto Liberdade Digital, 1 de julho de 2021. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=REa_geA28eE.

WU, Vinicius. “Redes sociais contribuíram para o acirramento político nas eleições”. Publicado em Carta Maior, 10 de novembro de 2014. Disponível em https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Redes-sociais-contribuiram-para-o-acirramento-politico-nas-eleicoes%250A/4/32214.

Publicado por Bruna Valêncio de Jesus Santos


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