Correntes doutrinárias da regulação da internet

Por Melissa Mey S. Miglio

A internet, desde sua criação em 1969, evoluiu de forma considerável e cada vez mais rápida. Anteriormente era usada para fins meramente científicos, militares e governamentais, contudo, nos dias atuais, é praticamente inerente à humanidade, principalmente com a chamada “Internet das coisas”, um termo proposto em 1999 e cada vez mais atual. Por isso, seja qual for o propósito para a sua utilização, a Internet e seu uso precisam ser regulados pelo Direito de forma a prevenir e/ou punir qualquer conduta considerada ilícita. Nessa toada, o professor Marcel Leonardi preconiza em seu livro “Fundamentos do Direito Digital” algumas correntes doutrinárias criadas ao longo dos anos a respeito dos problemas oriundos da internet, este artigo busca evidenciar as principais delas, bem como comentar alguns de seus problemas.

  1. Autorregulação

Primeiramente, importa salientar que ao final de 1980, surgiu a ideia de que a Internet possuía um território próprio e separado, alheio a questões externas, do mundo “off-line”, tal território era denominado “ciberespaço”. Com essa mentalidade, criou-se a corrente doutrinária da autorregulação, nela a Internet se autorregularia por meio de um contrato social único para o “ciberespaço”, assim, qualquer problema seria resolvido por meios próprios, não havendo necessidade de quaisquer tipos de interferências, incluindo a legislativa. Tal corrente foi pensada com base na liberdade de expressão e no texto escrito por John Perry Barlow, intitulado como, em tradução livre, “A declaração da independência do ciberespaço”. Dessa forma, apesar de a unanimidade ser um pouco complexa, a autorregulação com um número pequeno de pessoas parece ótima, afinal, quando pensamos em um grupo limitado de pessoas de uma mesma região, ou seja, com costumes e crenças semelhantes, para decidir sobre uma determinada questão, sua regulação se torna facilitada pela característica homogênea de tal grupo. Contudo, quando pensamos nisto em escala mundial, com quase 5 bilhões de usuários na rede, conforme o relatório da We Are Social e da Hootsuite de janeiro de 2021, a autorregulação se torna impossível, considerando que as pessoas desse grande grupo possuem diferentes culturas, posicionamentos e opiniões, tornando este modelo inviável em larga escala.

Entretanto, em alguns sistemas da Internet, a autorregulação é possível. Um exemplo disso é o sistema de vigilância utilizado em jogos eletrônicos, como CS:GO, DOTA 2 e muitos outros. Esse sistema chamado de “Overwatch” permite que os jogadores denunciem condutas anticompetitivas ou preconceituosas, funcionando da seguinte forma: um jogador, ora denominado player, percebendo uma conduta ilícita de outro player que venha a ferir os termos de uso do jogo, pode fazer uma denúncia. Assim, jogadores mais experientes avaliam o caso e enviam uma resposta que pode ser categorizada em três opções: (i) culpado; (ii) inocente; ou (iii) evidências insuficientes. As sanções variam conforme a maioria dos votos, se todos votaram como culpado, o jogador que cometeu o ato ilícito pode ter sua conta suspensa.

  1. Direito do ciberespaço

De encontro com essa perspectiva de autorregulação, quando pensamos em Direito em uma escala global, em um determinado caso concreto, temos a seguinte resposta como resultado: “depende”, afinal, a legislação muda conforme o local que está sendo tutelado.  Nesse trilhar de ideias, David G. Johnson e David G. Post pensaram em um “direito do ciberespaço”, assim, para eles o “ciberespaço” da Internet deveria ser tratado de acordo com suas peculiaridades, levando em consideração sua “população”, história e cultura. Ainda nesse sentido, o direito tradicional baseado em fronteiras físicas não alcançaria o ciberespaço, uma vez que qualquer conduta cometida nele se diferiria daquelas “off-line”, havendo a necessidade de formação de organismos internacionais pelos governos convencionais com o objetivo de criar e regular normas globais para o “ciberespaço”.

Isto posto, a ideia de um Direito Internacional para a regulação da internet em um primeiro momento parece ser a chave para todos os problemas oriundos do meio digital, contudo, é quase utópico pensarmos em um mundo em que todas as nações concordem com um tipo de regulamentação e a adotem como regra geral. 

Nessa esteira, é verdade que muitos dos tratados internacionais propostos não são ratificados por todos os países. Mesmo que esta fosse uma possibilidade, surge um novo impasse ao pensar a qual órgão superior toda a população mundial será submetida, comprovando novamente que a corrente doutrinária mencionada se faz ineficiente para a correta regulação da Internet.

  1. Analogia

A analogia é um dos procedimentos de autointegração do direito conforme o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, onde aduz que “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Assim, caso haja uma situação em que as leis não são suficientes para sua resolução, considera-se aquelas utilizadas em casos com semelhanças relevantes a esta situação. 

Ademais, a corrente doutrinária baseada em analogia afirma que o direito tradicional pode ser utilizado para regular a Internet, basta aplicarmos o método da analogia, sendo esta uma premissa relativamente simples, mas cujo problema já é conhecido. Inclusive, o risco se dá pela quantidade infinita de comparações e interpretações que podem ser feitas pelo pensamento humano e pela mera análise superficial de um caso comparado a outro, o que  pode gerar grandes equívocos e causar tremenda insegurança jurídica. 

Portanto, alguém invadir seu e-mail pessoal não é o mesmo que invadir sua casa, que também não é o mesmo que invadir seu carro e que, novamente, não é o mesmo que invadir seu banco digital. Nessa perspectiva, “utilizar sempre a mesma analogia para a Internet significa desprezar suas múltiplas utilidades e ignorar a hermenêutica jurídica”. 

Por fim, a analogia é importante para preencher lacunas existentes na legislação, mas não deve ser adotada como regra para tutelar qualquer especificidade existente. O Direito deve se adequar a realidade, mesmo que muitas vezes isso aconteça de forma mais lenta do que gostaríamos. 

  1. Abordagem Mista

Esta abordagem leva em consideração tanto o sistema jurídico quanto a arquitetura da rede, pois ao contrário do que pensavam os outros doutrinadores, mesmo que haja diferenças entre o mundo físico e o virtual, essas não possuem proporções absurdas. Sendo assim, não há necessidade de descartar completamente o direito tradicional (ou utilizá-lo como única fonte de regulação da Internet), mas sim levar em consideração simultaneamente características específicas do mundo online.

Um dos doutrinadores mais importantes dessa corrente foi Lawrence Lessig, criador da hipérbole “Code is Law”, cuja premissa era a regulação da internet por meio do Direito, da Arquitetura da Rede, do mercado e das normas sociais, de forma conjunta,  afirmando que “o Direito pode e deve regulamentar essas arquiteturas de controle, de modo a afetar, direta ou indiretamente, as atividades praticadas por meio da Internet.”

Sob essa ótica, é possível afirmar que a evolução da Internet não se limitou apenas a seus aspectos tecnológicos, mas também jurídicos, de forma que até mesmo hoje em dia estamos em constante progresso para a tutela e regulação do meio digital da melhor forma, por exemplo, a criação de legislação específica para a proteção de dados ou da própria Internet. Portanto, é necessário frisar a importância do operador do direito conhecer os aspectos arquitetônicos da rede, afinal, torna-se impossível regular algo o qual não conhecemos. 

Referências Bibliográficas

  • Teoria do Ordenamento Jurídico, de Norberto Bobbio (1997, Editora Universidade de Brasília).
  • “Internet foi criada em 1969 com o nome de “Arpanet” nos EUA”. Publicado em Folha de S. Paulo.
  • Fundamentos do Direito Digital, de Marcel Leonardi (2019, Thomson Reuters Brasil).
  • Democracia conectada: a internet como ferramenta de engajamento político-democrático, de Eduardo Magrani (2014, Juruá).
  • Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconectividade, de Eduardo Magrani
  • “Número de usuários de Internet no mundo chega aos 4,66 bilhões”. Publicado em Istoé Dinheiro, em 3 de fevereiro de 2021.
  • “Overwatch, sistema de moderação da Valve, chega a Dota 2”. Publicado em Tecmundo, em 28 de janeiro de 2021.

Imagem: G1/Shutterstock

Publicado por Maria Fernanda Marinho


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