Falar do sistema prisional brasileiro já é, por si só, falar de exclusão. Mas, quando pensamos em pessoas transgênero encarceradas, o buraco é ainda mais profundo. Dentro de um espaço que já é marcado pela superlotação, pela violência policial e pelo racismo estrutural, as pessoas trans encontram uma realidade que beira o estado de tortura permanente. A prisão, que deveria ser, ao menos em tese, um espaço de ressocialização, torna-se, para corpos trans uma máquina de aniquilação física, psicológica e simbólica.
A Invisibilidade Como Regra
Um dos grandes problemas é que o Estado brasileiro, em regra, não reconhece a identidade de gênero da pessoa trans quando ela entra no sistema prisional. O critério, quase sempre usado, é o sexo biológico registrado no documento de identidade. Assim, homens trans acabam sendo encaminhados para unidades femininas, enquanto mulheres trans são enviadas a presídios masculinos.
Essa escolha “administrativa” do Estado não é neutra: ela define se a pessoa vai sofrer violência sistemática, se terá acesso a cuidados de saúde, se poderá se vestir de acordo com sua identidade ou se será violentada diariamente seja por colegas de cela ou até por agentes penitenciários. Em vez de respeitar a dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, III, da Constituição Federal, o sistema penal escolhe a via mais cruel, ignorando completamente a identidade dessas pessoas.
Mulheres Trans em Presídios Masculinos: A Tragédia Anunciada
Mulheres trans em unidades prisionais masculinas, enfrentam uma rotina que pode ser descrita em três palavras: violência, estupro e morte. Ao serem colocadas em celas com dezenas de homens, ficam expostas a agressões físicas e sexuais, sem qualquer proteção do Estado. Muitos relatos mostram que agentes penitenciários tratam essas situações como “naturais”, reforçando o discurso de que “se entrou ali, já sabia o que ia enfrentar”.
Não raro, mulheres trans são usadas como “moeda de troca” entre facções, transformadas em “propriedade” de outros presos ou tornam-se alvo constante de estupros coletivos. Há casos registrados pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e pela Anistia Internacional que revelam situações de confinamento em solitárias “para proteção”, o que, na prática, significa manter essas mulheres em isolamento forçado, sem acesso a banho de sol, estudo ou visitas. É a escolha entre o estupro coletivo e a tortura solitária.
Homens Trans em Presídios Femininos: A Violência Velada
No caso de homens trans, a lógica é diferente, mas igualmente cruel. Encaminhados a presídios femininos, eles sofrem não só pela negação da identidade de gênero, mas também por práticas de invisibilização. Muitos são obrigados a usar roupas femininas, a serem tratados pelos nomes de registro que não reconhecem e a conviver em um espaço que nega completamente sua masculinidade.
Além disso, a falta de acesso a tratamentos hormonais interrompe processos de transição, causando sofrimento físico e psicológico. O corpo, que já é alvo de vigilância e controle, passa a ser forçado a retroceder em um processo de afirmação identitária que é vital.
A Precariedade da Saúde e o Abandono do Estado
O direito à saúde é assegurado pela Constituição (art. 196), mas, no cárcere, ele já é negado de maneira generalizada. Para pessoas trans, essa violação é ainda maior. Poucos estados têm protocolos claros sobre o fornecimento de hormonioterapia dentro das unidades prisionais. Sem acompanhamento médico, muitas recorrem a formas clandestinas de manter o processo de transição, aplicando hormônios de forma irregular, sem esterilização adequada e sem controle de dosagem, o que pode gerar efeitos colaterais graves.
A ausência de atenção também se estende à saúde mental. Pessoas trans presas estão entre os grupos com maior índice de depressão, automutilação e tentativa de suicídio no cárcere. Um levantamento da Pastoral Carcerária apontou que a taxa de ideação suicida entre pessoas trans presas é várias vezes superior à média da população carcerária geral, já altíssima por si só.
Entre a Letra da Lei e a Realidade
Do ponto de vista normativo, o Brasil até tem avanços. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução nº 348/2020, que prevê que pessoas trans devem ser alocadas em unidades de acordo com sua identidade de gênero, respeitando sua autodeclaração. O Supremo Tribunal Federal, em decisões recentes, também reconheceu o direito à identidade de gênero como parte da dignidade da pessoa humana.
Na prática, porém, essas normas raramente são aplicadas. Faltam unidades específicas, falta capacitação de agentes e sobra preconceito. Em muitos estados, não há sequer alas adaptadas, e, quando existem, funcionam como espaços de isolamento, não de convivência digna. A distância entre o que está no papel e o que acontece nos presídios é um abismo que se mede em corpos violentados e vidas destruídas.
A Seletividade Penal e o Recorte Trans
É impossível falar de encarceramento trans sem falar de seletividade penal. O Brasil prende, majoritariamente, pessoas pobres, negras e periféricas. Quando adicionamos a variável da identidade de gênero dissidente, o risco de prisão aumenta. Pessoas trans estão entre as populações mais vulneráveis à violência policial, à criminalização da sobrevivência e à falta de acesso a direitos básicos.
Muitas mulheres trans presas foram capturadas em contextos de prostituição, criminalizadas por pequenos furtos ou pelo simples porte de drogas. A criminalização recai justamente sobre aquelas que já estavam fora do mercado formal de trabalho, expulsas pelo preconceito estrutural. O cárcere, nesse sentido, não é destino acidental, mas parte de um ciclo de exclusão que começa na escola, passa pelo mercado de trabalho e culmina na prisão.
O Cárcere Como Máquina de Exclusão Total
Ao negar a identidade de gênero, o sistema prisional cumpre uma função que vai além da punição: ele reforça a ideia de que pessoas trans não são dignas de humanidade. A cela se transforma em uma máquina de apagar existências, de silenciar corpos dissidentes e de reafirmar a cisnormatividade compulsória.
Nesse sentido, o cárcere é uma extensão da violência que essas pessoas já sofrem nas ruas, nas escolas, nas famílias e no mercado de trabalho. A prisão é apenas a etapa final de um processo de exclusão social que começa muito antes, mas que encontra, atrás das grades, sua forma mais cruel e institucionalizada.
Um Olhar Abolicionista
A discussão sobre pessoas trans no cárcere não pode se limitar a “como alocar” ou “como adaptar alas”. Isso seria pensar apenas em gerenciar o sofrimento, não em enfrentá-lo. A questão central é: faz sentido encarcerar pessoas que já vivem à margem da sociedade? Para além da falência do sistema prisional em geral, o abolicionismo penal aponta que, no caso de pessoas trans, a prisão cumpre uma função de aniquilação deliberada.
Se queremos falar em dignidade, em justiça e em humanidade, precisamos questionar não apenas as práticas dentro das prisões, mas também a própria lógica de encarceramento em massa que sustenta o Estado brasileiro.

“Travestis no cárcere: As relações de poder vivenciadas pelas travestis no sistema prisional”, Laricia Keury
Conclusão: A Cela Errada é a Própria Prisão
Diante de tudo isso, a grande questão não é se pessoas trans estão na “cela certa”. A grande questão é que a prisão nunca é o lugar certo para corpos dissidentes. Ela é, estruturalmente, o lugar errado. Enquanto o sistema prisional for usado como resposta automática para a pobreza e para identidades que não se encaixam na norma cis-hetero, continuaremos a assistir a tragédias cotidianas.
As pessoas trans não precisam de mais presídios adaptados. Precisam de direitos garantidos, de saúde, de educação, de emprego, de reconhecimento e de liberdade. O que o sistema oferece hoje é o oposto: abandono, violência e morte lenta.
Se existe uma frase que sintetiza essa realidade, é esta: a prisão brasileira é a cela errada para pessoas trans, porque é a cela errada para toda a população marginalizada.
Escrito/Digitado/Publicado por B.Z.A.S.B.C.
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