O Festival de Parintins: O Patrimônio Imaterial Brasileiro Onde a Cultura da Amazônia Vira Espetáculo

No coração pulsante da floresta amazônica, uma ilha no meio do Rio Amazonas se transforma, anualmente, no palco de uma das maiores manifestações culturais do Brasil e do mundo: o Festival Folclórico de Parintins. Durante três dias de junho, os céus do município amazonense se iluminam não com fogos, mas com as cores vibrantes, o batuque tribal e o som inconfundível do boi-bumbá. Uma rivalidade que não se odeia: Boi Caprichoso e Boi Garantido disputam, frente a frente, não apenas um título, mas o amor do povo, a preservação das raízes indígenas, e a alma de um Brasil profundo, mítico e vivo.

O Começo: da Lenda ao Espetáculo

O festival tem origem em uma mistura potente de lendas, fé e resistência cultural. Tudo remonta à tradição do boi-bumbá, uma variação do bumba meu boi, que nasceu no Nordeste e se espalhou pelo Norte com características locais. A história base é conhecida: Pai Francisco mata o boi favorito do patrão para satisfazer um desejo de gravidez da esposa, Catirina. A partir disso, os rituais indígenas, africanos e católicos se fundem, criando um caldeirão simbólico que, em Parintins, ganhou vida própria.

Desde 1965, quando o festival tomou forma mais oficializada, Parintins vive uma espécie de transe coletivo todo final de junho, sempre durante o último fim de semana do mês. A cidade, de cerca de 115 mil habitantes, dobra de população, e se enche de turistas, jornalistas, artistas, estudiosos, e, claro, os apaixonados torcedores dos bois.

Caprichoso x Garantido: mais que bois, símbolos de identidade

A disputa entre os bois não é só espetáculo: é uma batalha simbólica que mobiliza identidades, sonhos e gerações. O Boi Caprichoso, com suas cores azul e preta, representa o povo da parte superior da cidade (Zé Afonso) e tem como símbolo um boi de estrela na testa. É visto como moderno, inovador, cheio de elementos futuristas e valorização das tecnologias. Seu torcedor é considerado mais artístico, vanguardista, rebelde e ousado.

Do outro lado do bumbódromo, com as cores vermelha e branca, está o Boi Garantido, símbolo da parte baixa da cidade (Palmares), com o coração como marca registrada. É o boi do povo, do chão, da emoção, da tradição. Seus torcedores são conhecidos pela paixão intensa, apegados ao passado e à força da cultura ancestral, especialmente a indígena e cabocla.

A rivalidade é tamanha que em Parintins não se usa azul ou vermelho fora de contexto, para evitar ser confundido com torcedor do boi rival. As torcidas organizadas, Galera Caprichoso e Comando Garantido, têm coreografias ensaiadas por meses, gritos de guerra, e emoção suficiente para fazer qualquer estádio de futebol parecer piquenique.

Poster de Divulgação - 2025

O Bumbódromo: Arena de Rituais e Encantamento

O centro de tudo é o Bumbódromo de Parintins, uma arena em formato de cabeça de boi, com capacidade para mais de 35 mil pessoas. Nele, cada boi tem 2 horas e meia por noite para apresentar seu espetáculo, e não é exagero chamar de “espetáculo”: são mais de 3 mil brincantes por boi, com alegorias gigantescas, roupas de luxo, pirotecnias, encenações teatrais, e a representação de personagens fixos e temáticos.

Entre os personagens obrigatórios estão: o Amo do Boi (o narrador da história), o Pai Francisco e a Mãe Catirina, a Sinhazinha da Fazenda, o Levanta-Touro, o Curumim, a Porta-Estandarte, e a Rainha do Folclore. Mas uma figura brilha com força única: a Cunhã-Poranga, símbolo da mulher guerreira amazônica, um dos papéis mais desejados e disputados do festival.

Além dos personagens fixos, cada boi desenvolve um tema anual, geralmente relacionado à valorização da cultura indígena, da Amazônia, ou de pautas sociais. As apresentações são julgadas por uma comissão técnica que avalia critérios como: ritual indígena, alegorias, organização cênica, marujada (bateria), toada (música), evolução e criatividade.

Bumbódromo

Bumbódromo 2025.

Boi Garantido e Amo do Boi (João Pedro Farias)

Boi Garantido, 2025.

Boi Caprichoso e Levantador de Toadas (Patrick Araújo)

Boi Caprichoso, 2025.

Toada: a alma do boi em forma de canção

As toadas são o coração musical do Festival. Canções autorais, compostas exclusivamente para cada edição, que misturam ritmos indígenas, caribenhos, caboclos e até eletrônicos. Elas falam de floresta, lendas, povos originários, encantarias, amor e resistência. É impossível ficar parado ao som de uma toada que explode em sincronia com a dança dos brincantes, o girar das alegorias, o som dos tambores.

Algumas toadas viraram verdadeiros hinos do Norte, como “Vermelho” (Garantido) e “Caprichoso Olodum” (Caprichoso). Elas tocam em rádios locais, festas, escolas, e são passadas de geração em geração.

Cultura como resistência

O Festival de Parintins não é só festa, é também um ato político. Em meio à invisibilização dos povos indígenas, à devastação da Amazônia e à marginalização do Norte no cenário nacional, Parintins ergue sua voz com cor, brilho e ancestralidade. É o grito de quem canta em Nheengatu, dança com penas verdadeiras, luta com o arco e flecha da arte.

Os bois dão palco para pautas urgentes como demarcação de terras, proteção ambiental, racismo, machismo, LGBTQIAPN+fobia e pobreza. Muitas vezes, a apoteose da noite é um ritual indígena encenado com tanta veracidade que parece invocar o próprio espírito da floresta.

O evento acontece no Bumbódromo, uma arena com formato de cabeça de boi, dividida entre as torcidas dos dois bois rivais: Caprichoso (azul) e Garantido (vermelho). A cada noite, um boi se apresenta por vez, com até 2h30 para encenar seu espetáculo. As apresentações são grandiosas e teatrais, com milhares de brincantes, alegorias gigantes (algumas com mais de 20 metros de altura), coreografias ensaiadas por meses, fantasias riquíssimas e músicas autorais chamadas toadas. O objetivo é encantar o público e os jurados enquanto contam uma narrativa baseada em mitos, lendas, crítica social e valorização da Amazônia e dos povos indígenas.

Cada apresentação segue um roteiro temático com itens obrigatórios, que são avaliados por jurados especializados em critérios como ritual indígena, levantador de toadas, sinhazinha da fazenda, cunhã-poranga, porta-estandarte, alegorias, organização cênica, criatividade e muito mais. Os bois são representados por personagens fixos e se enfrentam simbolicamente pela vitória do festival, que é anunciada no último dia, após a soma das notas. Apesar da rivalidade intensa entre Caprichoso e Garantido, a disputa é marcada pelo respeito mútuo, pela paixão coletiva e pelo compromisso de manter viva uma das tradições culturais mais ricas e emocionantes do Brasil. O festival não é só um show, é um ritual de pertencimento, resistência e orgulho amazônico.

O legado de um povo que não esquece quem é

Parintins é a prova viva de que o Brasil profundo resiste e se reinventa. Mesmo diante do descaso histórico com o Norte, da falta de apoio institucional e dos desafios logísticos, o festival se mantém gigante, sendo transmitido ao vivo para o mundo, estudado em universidades, e celebrado em palcos internacionais.

Mais que um evento, Parintins é identidade. É pertencimento. É um povo inteiro dizendo: “Estamos aqui. E somos beleza, força, história.”

No final, quando o vencedor é anunciado, há lágrimas e aplausos, mas jamais violência. Porque o Festival de Parintins é, acima de tudo, um pacto de celebração. Os bois lutam, sim, mas pela memória, pela cultura e pela alegria do povo.

E que viva o Garantido. Viva o Caprichoso. Viva Parintins. Viva o Brasil encantado que canta, dança e resiste em forma de boi.

Boi Caprichoso e Boi Garantido

Bois da Festa de Parintins

Blocos de Julgamento

Categorias de Julgamento

O Festival de Parintins de 2025 ocorreu nos dias 27, 28 e 29 de Junho. O Resultado do Boi-Bumbá Vencedor sairá até 16h (Horário de Brasília).

Festival de Parintins 2025

Publicado/Desenhado/Escrito/Editado: Bruno M.Z.A.S.B.C.


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