“PETs” – Privacidade para além da adequação

Escrito por Clínica Jurídica Habilidados

Muito se fala sobre a necessidade de adequação à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) como requisito jurídico para o desenvolvimento de culturas de privacidade em organizações. Com isso, a privacidade acaba sendo, muitas vezes, uma mera exigência burocrática, centrada no cumprimento de frameworks e obrigações legais. Como é de se esperar e também muitas vezes o que se enfrenta, a privacidade costuma ser considerada apenas após a consolidação dos fluxos e processos envolvendo dados pessoais. Assim, as empresas se veem obrigadas a reestruturar profundamente sua abordagem em relação aos dados, o que torna o processo de adequação, apesar de muito necessário e importante, uma tarefa complexa e repleta de entraves que poderiam ser evitados com uma abordagem preventiva. É nesse tipo de cenário que a discussão sobre Privacy-Enhancing Technologies, ou Tecnologias de Aprimoramento de Privacidade (PETs), se mostra fundamental. 

Os primeiros estudos sobre PETs podem ser rastreados até um relatório intitulado “Tecnologias de Aprimoramento de Privacidade (PETs): O Caminho para o Anonimato”, publicado pela primeira vez em 1995 pelas autoridades de privacidade do Canadá e da Holanda. O artigo utilizou o termo “aprimoramento de privacidade” para se referir a uma variedade de tecnologias que protegem a privacidade pessoal, ao minimizar ou eliminar a coleta de dados identificáveis. Em fevereiro de 2023, o Comitê de Peritos das Nações Unidas em Big Data e Ciência de Dados para Estatísticas Oficiais lançou seu “Guia sobre Tecnologias de Aprimoramento da Privacidade para Estatísticas Oficiais”. O documento explora as abordagens atuais de proteção de dados e suas limitações, com o objetivo de orientar os institutos nacionais de estatística quanto às melhores práticas e considerações para a aplicação de PETs. Nele, PETs são definidas como “tecnologias desenvolvidas para processar e compartilhar dados sensíveis de forma segura”.

Em suma, podemos traduzir PETs como ferramentas desenvolvidas para proteger dados pessoais durante seu tratamento, garantindo que a privacidade dos titulares seja protegida em todas as etapas do ciclo de vida dos dados. Elas funcionam como camadas de proteção que impedem o uso inadequado dos dados pessoais, mesmo quando eles precisam ser tratados ou compartilhados. Essas tecnologias atuam principalmente em duas frentes: na entrada dos dados, controlando como e por quem eles podem ser tratados; e na saída, alterando os resultados de forma que não seja possível identificar os dados originais. Um exemplo prático é o uso de técnicas de anonimização por institutos de estatística: ao divulgar dados sobre renda média em uma região, os PETs garantem que nenhuma pessoa possa ser individualmente identificada a partir desses números. Assim, as PETs têm o potencial de promover o respeito à privacidade desde o início dos processos organizacionais.

Tendo em vista o conceito e a finalidade de PETs, fica evidente que a sua aplicação se relaciona diretamente com os princípios da LGPD. Em relação à necessidade, por exemplo, PETs podem ajudar a limitar o uso de dados ao mínimo necessário para atingir a finalidade pretendida, evitando tratamento excessivo ou desnecessário. Da mesma forma, tecnologias como anonimização, criptografia e agregação reduzem a quantidade de dados pessoais expostos ou utilizados diretamente, contribuindo com a minimização dos dados. Além disso, estão fortemente ligadas ao princípio da segurança, uma vez que aplicam medidas técnicas, como criptografia e anonimização, que protegem os dados contra acessos indevidos e vazamentos. PETs também podem contribuir com a efetivação do princípio da prevenção, incorporando mecanismos que evitam o risco de danos aos titulares desde a concepção de sistemas e processos. No que diz respeito ao princípio da transparência, algumas dessas tecnologias podem permitir rastreabilidade no uso dos dados, promovendo maior visibilidade sobre o tratamento. 

Apesar dessa importante questão principiológica, a necessidade fundamental das PETs vai além: sua relevância se encontra no fato de que sua aplicação reflete uma mentalidade orientada à privacidade, que valoriza a proteção dos dados pessoais do  titular desde as etapas iniciais de desenvolvimento, escolha e implementação de soluções em organizações que tratam dados pessoais. Isso significa que considerar PETs no tratamento de dados pessoais é adotar uma postura que ultrapassa a lógica da adequação formal, integrando o direito à privacidade diretamente na estruturação dos fluxos de dados, e não apenas como uma medida corretiva após esses fluxos já estarem definidos. 

Além de ser uma prática exemplar  de respeito à privacidade, um ensaio publicado pelo  Centro de Estratégia & Regulação – Reglab, evidenciou o grande potencial das soluções tecnológicas para o mercado brasileiro.  A pesquisa aponta que a adoção da LGPD resultou em um aumento significativo nos investimentos  das empresas brasileiras com soluções de privacidade, totalizando mais de US$ 900 milhões em 2021. O estudo concluiu que, apesar da LGPD ter fomentado o desenvolvimento do setor de PETs no país, o mercado ainda é dominado por empresas estrangeiras, em detrimento de empresas nacionais. Como solução, o estudo sugere  a implementação de políticas de conteúdo local nas aquisições públicas como uma estratégia eficaz para diminuir desigualdades no setor e impulsionar o potencial de inovação das empresas nacionais.

Nesse sentido, esse tipo de estratégia não só impulsionaria o mercado de tecnologia no Brasil, como aumentaria o reconhecimento e a aplicação de PETs por organizações com tratamento expressivo de dados. Esse cenário contribuiria, ainda, com um fortalecimento da cultura de privacidade para além da conformidade normativa, incorporando a proteção de dados desde a concepção de soluções tecnológicas. Assim, a dependência de processos de adequação meramente burocráticos e reativos, cuja necessidade muitas vezes só se revela após a ocorrência de incidentes de segurança ou falhas de governança que poderiam ter sido evitadas com o uso prévio de PETs, diminuiria.

Ao incorporar essas tecnologias de forma proativa, as empresas podem evitar riscos e fortalecer sua reputação no mercado, promovendo um ambiente mais seguro e confiável. No contexto brasileiro, a valorização do desenvolvimento local e o incentivo a soluções nacionais podem não só reduzir a dependência de fornecedores estrangeiros, mas também impulsionar a inovação tecnológica no setor. Em última análise, adotar PETs é um passo fundamental para construir uma cultura robusta de privacidade, que transcende a legislação e se torna parte integral da estratégia organizacional.

Referências Bibliográficas

CANANN, Renan Gadoni. Replicando a GDPR na LGPD: impactos na capacidade inovativa do mercado brasileiro de tecnologias de aprimoramento de privacidade. In: ENSAIOS REGLAB. São Paulo: Reglab, 2025. Disponível em: https://reglab.com.br/a-lgpd-como-motor-de-inovacao-no-brasil-impactos-no-mercado-de-tecnologias-de-privacidade-pets/. Acesso em 05 maio 2025. 

KOERNER, Katharina; LALONDE, Brandon. Cheering emerging PETs: Global privacy tech support on the rise. International Association of Privacy Professionals (IAPP), 24 jan. 2023. Disponível em: https://iapp.org/news/a/cheering-emerging-pets-global-privacy-tech-support-on-the-rise. Acesso em: 1 maio 2025.

NAÇÕES UNIDAS. Guia sobre Tecnologias de Aprimoramento da Privacidade para Estatísticas Oficiais. Comitê de Peritos das Nações Unidas em Big Data e Ciência de Dados para Estatísticas Oficiais. Nova Iorque, 2023. Disponível em: https://unstats.un.org/bigdata/task-teams/privacy/guide/2023_UN%20PET%20Guide.pdf. Acesso em: 2 maio 2025.

OCDE. Emerging privacy-enhancing technologies: Current regulatory and policy approaches. OECD Digital Economy Papers, No. 351, OECD Publishing, Paris, 8 mar. 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1787/bf121be4-en. Acesso em: 5 maio 2025.

ROYAL SOCIETY. Privacy Enhancing Technologies. Disponível em: https://www.royalsociety.ac.uk/news-resources/projects/privacy-enhancing-technologies/. Acesso em: 1 maio 2025.

Publicado por Bruna Valêncio de Jesus Santos


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