“Liberdade”: O Brasil que Surgiu Depois da Abolição

135 anos depois da Lei Áurea, o país ainda carrega as correntes de um passado mal resolvido. O que aconteceu com as pessoas negras após o fim da escravidão? Onde foram parar? Como sobreviveram? E por que ainda vivem, majoritariamente, à margem?

Em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, encerrando oficialmente mais de 300 anos de escravidão no Brasil. O país foi o último do Ocidente a abolir o sistema escravocrata, e o fez sem qualquer medida de transição, reparação ou garantia de cidadania para os mais de quatro milhões de pessoas libertas. O que poderia ter sido um marco de justiça e liberdade revelou-se um gesto simbólico, superficial e profundamente negligente. A abolição cortou as correntes, mas deixou intactas as estruturas de opressão.

Libertos, Mas Abandonados

O fim da escravidão não foi seguido por nenhuma política pública de reintegração social. Sem terra, moradia ou emprego, os libertos foram lançados à própria sorte em um país que os queria livres no papel, mas fora de vista. A elite branca, temendo a convivência com os ex-escravizados e obcecada pelo projeto de “branqueamento” da população, incentivou a imigração europeia em massa. Italianos, alemães e espanhóis foram recebidos com incentivos e políticas de integração, enquanto os negros eram ignorados pelo Estado.

“Foi como soltar os pássaros de uma gaiola e queimar a floresta ao redor”, escreveu a historiadora Beatriz Nascimento. A liberdade chegou, mas não havia onde pousar.

O Nascimento das Favelas

Sem acesso à terra nem aos empregos urbanos que agora eram destinados aos imigrantes brancos, a população negra passou a ocupar terrenos esquecidos pelas autoridades. As primeiras favelas nasceram nesse contexto: espaços improvisados de sobrevivência à margem das cidades que cresciam sem eles. O termo “favela” surgiu no Rio de Janeiro, após a Guerra de Canudos, quando soldados sem pagamento ocuparam o Morro da Providência e o batizaram com o nome da planta típica do sertão baiano. Logo, esses espaços passaram a ser ocupados também por ex-escravizados, trabalhadores precários e migrantes internos.

A favela não é um problema: é uma resposta. Forçada, improvisada e negligenciada, à ausência do Estado.

Resistência Cultural e Espiritual

Diante da exclusão, a população negra resistiu com o que tinha: cultura, espiritualidade e coletividade. As religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, enfrentaram perseguições policiais e ataques morais, mas sobreviveram e floresceram como espaços de cura, identidade e ancestralidade. O samba nasceu nos terreiros e quintais, antes de ser apropriado e “domesticado” para agradar a elite. A capoeira, antes criminalizada, tornou-se símbolo nacional.

Essas expressões culturais não são folclore: são estratégias de sobrevivência, afirmação e reconstrução da autoestima em um país que insiste em associar negritude à marginalidade.

Violência e Exclusão Como Política de Estado

Com o passar das décadas, o racismo mudou de forma, mas não desapareceu. Tornou-se estrutural e institucionalizado. A criminalização da pobreza, e por consequência, da negritude, tornou-se política pública. Pessoas negras são maioria entre os desempregados, os sem-teto, os que têm menor acesso à educação, à saúde e à justiça.

Nas últimas décadas, com o aumento da militarização das polícias e das operações em favelas, o Estado passou a tratar esses territórios como zonas de guerra. A juventude negra é o principal alvo desse projeto. Segundo o Atlas da Violência 2023, mais de 75% das vítimas de homicídio no Brasil são negras.

O Mito da Democracia Racial

Durante o século XX, o Brasil vendeu ao mundo, e a si mesmo, a imagem de um país cordial, onde diferentes raças conviviam em harmonia. Esse mito da democracia racial serviu para esconder o racismo cotidiano e estrutural que molda as relações sociais, econômicas e políticas do país.

Enquanto isso, a população negra seguiu sendo a que menos acessa cargos de poder, que sofre discriminação nos processos seletivos, que tem seus corpos hipersexualizados ou vigiados, que é ensinada, desde cedo, a se conter para sobreviver.

Conquistas, Cotas e o Futuro

A partir dos anos 2000, o Brasil começou a implementar políticas públicas voltadas à equidade racial. A adoção de cotas raciais nas universidades públicas representou uma virada histórica, possibilitando que milhares de jovens negros acessassem espaços antes restritos à elite branca. Mas ainda é pouco.

As cotas são uma ponte, não o destino final. Reparação exige políticas de acesso à terra, à moradia digna, à saúde, à memória, à cultura e à segurança. Exige transformar as estruturas e reconhecer que o Brasil foi construído com mãos negras, e que deve, portanto, muito mais do que desculpas.

A Abolição Incompleta

Mais de 130 anos depois da assinatura da Lei Áurea, o Brasil ainda não aboliu o racismo. O país que emergiu depois da escravidão não foi um país de integração, mas de exclusão. A história dos libertos é, até hoje, a história de uma luta diária por reconhecimento, dignidade e justiça.

Mas, mesmo diante de tudo, há vida. Nas bordas das cidades, no som dos tambores, na arte das periferias, na força das mães de vítimas da violência, no sorriso da juventude preta que dança, sonha e resiste, pulsa o futuro. Um futuro que só será possível com memória, reparação e transformação.

Porque liberdade sem inclusão é só mais uma forma de abandono.

Publicado/Desenhado/Escrito por: Bruno Zagati A. S. B. C.


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