A Dupla Discriminação: Gordofobia e Transfobia
Ser trans já significa enfrentar desafios diários devido à transfobia estrutural da sociedade. Ser gordo, por sua vez, também carrega um peso significativo de discriminação e estigmatização. Quando essas duas identidades se encontram, a interseccionalidade das opressões cria uma realidade ainda mais hostil e invisibilizada.
Segundo uma pesquisa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), cerca de 90% das pessoas trans no Brasil enfrentam dificuldades para acessar o mercado formal de trabalho, muitas delas também relatam a discriminação relacionada ao peso. Dados do IBGE apontam que 56% da população brasileira está acima do peso, e pessoas gordas sofrem constantes dificuldades em ambientes sociais e profissionais. A falta de acessibilidade, o preconceito estético e a patologização do corpo gordo criam barreiras quase intransponíveis.
Mateus Rocha, homem trans gordo de 32 anos, relata: “Quando comecei minha transição, percebi que meu corpo não cabia no imaginário do que é ser um homem trans. A masculinidade magra, atlética, quase sempre branca, era o único padrão representado. Para um homem trans gordo, os desafios são dobrados. Nos veem como piada, como aberração, ou simplesmente nos ignoram”.
Pessoas trans gordas, muitas vezes, vivenciam exclusão em espaços LGBTQIAP+, onde corpos magros e dentro de padrões estéticos predominam. A busca por aceitação e pertencimento se torna ainda mais difícil, pois a comunidade, que deveria ser um porto seguro, muitas vezes reforça os mesmos padrões de beleza da sociedade cisnormativa.
O Acesso à Saúde: Entre Gordofobia e Transfobia
O acesso a serviços de saúde é um dos maiores desafios enfrentados por pessoas trans gordas. Profissionais da saúde frequentemente negligenciam suas queixas médicas, reduzindo qualquer problema ao peso corporal. Essa abordagem reducionista ignora a complexidade da saúde e impede diagnósticos e tratamentos adequados.
Para pessoas trans, a necessidade de acompanhamento para hormonização, cirurgias de afirmação de gênero e cuidados de saúde mental são essenciais. No entanto, a gordofobia médica pode dificultar ainda mais esse acesso. Muitos médicos impõem metas de emagrecimento para iniciar ou dar continuidade a tratamentos hormonais, atrasando ou inviabilizando a transição.
Outro obstáculo é a recusa ou adiamento de cirurgias de afirmação de gênero devido ao IMC. Segundo um estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cerca de 40% das pessoas trans que buscam cirurgias de afirmação de gênero são orientadas a perder peso antes do procedimento, sem uma avaliação aprofundada das condições de saúde individuais. Isso reforça uma lógica discriminatória que impede que muitas pessoas trans gordas acessem os cuidados necessários para sua afirmação de gênero.
Mateus comenta: “O médico me disse que eu precisava perder pelo menos 20 quilos para conseguir a mastectomia. Mas ninguém ofereceu suporte para isso. E se eu não quiser perder peso? Por que minha identidade tem que estar condicionada a um padrão corporal?”
Além disso, equipamentos hospitalares muitas vezes não são adaptados para corpos gordos, como macas, cadeiras de rodas e instrumentos cirúrgicos. A negligência estrutural contribui para que pessoas gordas evitem consultas médicas, agravando problemas de saúde que poderiam ser tratados precocemente.
Representatividade: A Invisibilidade de Pessoas Gordas Trans
A mídia tem dado espaço para discussões sobre diversidade de gênero, mas ainda há pouca visibilidade para corpos gordos trans. A narrativa dominante ainda é centrada em padrões magros e binários, excluindo pessoas gordas trans das conversas sobre identidade de gênero.
Felizmente, influenciadores e artistas estão rompendo com esses padrões. Pessoas como Jup do Bairro, Bielo Pereira e outras personalidades negras, gordas e trans têm utilizado suas vozes para ampliar essa representatividade. No entanto, ainda há um longo caminho a ser percorrido para que a pluralidade de corpos trans seja de fato aceita e valorizada.
Moda e Expressão de Gênero: A Falta de Opções
A moda é uma forma fundamental de expressão de gênero, mas encontrar roupas que afirmam a identidade de uma pessoa trans gorda é um grande desafio. Muitas marcas que trabalham com moda inclusiva não consideram corpos trans, enquanto marcas de moda trans não oferecem numerações grandes.
Essa exclusão reforça a dificuldade que pessoas trans gordas têm para encontrar um estilo que as representam e as faça sentir confortáveis em seus corpos.
Mateus compartilha sua frustração: “As roupas masculinas grandes não respeitam os formatos dos corpos gordos trans. Calças largas na cintura, camisetas que não se ajustam nos ombros. A moda não foi feita para a gente”.
Mercado de Trabalho: As Barreiras da Discriminação
Pessoas trans já enfrentam um alto índice de desemprego devido ao preconceito estrutural. Quando também são gordas, as chances de serem contratadas diminuem ainda mais. Um levantamento feito pelo LinkedIn em 2023 apontou que pessoas trans têm uma taxa de desemprego de 35%, muito acima da média nacional. Para pessoas gordas, os desafios também são imensos: um estudo do Instituto Locomotiva revelou que 72% das pessoas gordas já sofreram discriminação no ambiente de trabalho.
Como resultado, muitas pessoas trans gordas precisam recorrer a trabalhos informais ou enfrentam instabilidade financeira constante, dificultando seu acesso a direitos básicos como moradia e saúde.
Afetividade, Relacionamentos e Fetichização
O campo afetivo também é um grande desafio. Pessoas trans gordas frequentemente vivenciam dois extremos: o apagamento total de sua afetividade e desejo ou a fetichização.
Em aplicativos de relacionamento, há um grande número de relatos de rejeição por não atenderem ao padrão de beleza imposto pela sociedade. Por outro lado, também são alvo de fetichização, reduzidas a fantasias e não vistas como pessoas dignas de relações sérias e respeitosas.
Mateus desabafa: “Quando saio com alguém, sempre fico com receio de que seja uma experiência fetichizada. Já ouvi de homens cis que ‘gostam de homens gordos’ como se isso fosse algo exótico, e não simplesmente uma característica minha. Eu sou um homem, eu existo para além do meu corpo”.
Saúde Mental e Autoestima: Sobreviver em um Mundo Hostil
A pressão estética e a transfobia têm um impacto profundo na saúde mental de pessoas trans gordas. A falta de representação, a exclusão social e as dificuldades de acesso a serviços de saúde contribuem para altos índices de ansiedade, depressão e outros transtornos psicológicos.
Dados da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) mostram que pessoas trans têm uma taxa de depressão quatro vezes maior do que a população geral, e pessoas gordas relatam níveis mais altos de ansiedade devido à discriminação corporal.
No entanto, muitas encontram força em comunidades de apoio e no ativismo. A criação de espaços seguros, tanto online quanto offline, tem sido essencial para a construção da autoestima e do empoderamento.
O Caminho para um Mundo Mais Inclusivo
A luta de pessoas trans gordas não pode ser ignorada. A interseccionalidade das opressões exige que a sociedade repense seus padrões de beleza, suas práticas de inclusão e o acesso igualitário a direitos fundamentais.
A visibilidade, o suporte institucional e a representatividade são passos cruciais para garantir que todas as pessoas possam viver suas identidades plenamente, sem precisar enfrentar barreiras extras apenas por serem quem são.
Escrito por: Bruno Z. A. da S. B. de Castro
Imagem: Bruno Z. A. da S. B. de Castro
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Olá, boa tarde!
Respeitosamente, gostaria de trazer uma dúvida sobre o tema abordado.
Qual é a justificativa médica para exigir a perda de peso antes de certos procedimentos?
Existe um fundamento clínico para isso?
Se a recomendação dos médicos se baseia em evidências de que um menor peso reduz riscos cirúrgicos ou melhora a eficácia do tratamento, não seria essa uma conduta baseada na saúde e não em discriminação?
Afinal, não faz parte do trabalho do médico orientar o paciente para que o procedimento seja feito da forma mais segura possível?
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Olá, Clara! Boa tarde. Muito obrigado pela sua pergunta — ela é extremamente válida e abre espaço para um debate importante sobre saúde, medicina e equidade.
Sim, é verdade que a medicina busca garantir a segurança dos procedimentos cirúrgicos e que, em alguns casos, o peso pode ser um fator de risco. No entanto, o que muitas vezes acontece com pessoas trans — e especialmente com pessoas trans gordas — não é uma orientação clínica individualizada, mas uma exigência generalizada e, muitas vezes, inflexível, que ignora contextos, subjetividades e possibilidades reais.
Essa exigência, quando aplicada sem escuta e sem considerar alternativas, se transforma em barreira de acesso. Muitos profissionais não oferecem apoio para perda de peso, nem acompanham o processo com empatia. Apenas negam o atendimento, atrasando (ou impossibilitando) o cuidado que essas pessoas tanto precisam.
Além disso, a questão do peso na medicina ainda carrega muitos preconceitos estruturais, como apontam diversos estudos sobre gordofobia médica. Não é raro que pacientes gordos, trans ou não, sejam tratados com descaso ou tenham seus sintomas desconsiderados por conta do peso, mesmo quando este não é o real causador do problema.
Por fim, é preciso lembrar que a saúde de pessoas trans já enfrenta múltiplas barreiras sistêmicas. Portanto, repetir exigências sem considerar contextos sociais e emocionais — como ansiedade, disforia e urgência por cuidados afirmativos — não é apenas uma questão técnica, mas também ética.
O cuidado em saúde precisa ser baseado em evidências, sim — mas também em acolhimento, escuta e respeito à diversidade.
Se quiser, posso te indicar materiais e estudos que abordam essa questão com mais profundidade. Obrigado pela escuta!
– Bruno Zagati
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