A Meia-Irmã Feia e o Terror que Reinventa o Conto de Fada

Em outubro – mês do Halloween, o JP3 Indica mergulha no horror que se esconde por trás dos contos de fadas. A recomendação da vez é “A Meia-Irmã Feia” (The Ugly Stepsister), longa de terror corporal dirigido pela norueguesa Emilie Blichfeldt.

Inspirando-se na versão alemã do conto de Cinderela (1812), dos Irmãos Grimm, em que uma das irmãs corta os próprios dedos do pé para caber no sapato, o filme revisita e subverte a narrativa de modo cruel. Ele explora a obsessão pela beleza e converte a busca por aceitação em um pesadelo perturbador, levando o gesto ao extremo e utilizando  uma imagem arquetípica para tornar a parábola um espelho distorcido das pressões estéticas contemporâneas.

Ambientado na Europa do século XVIII, o enredo acompanha inicialmente a viúva Rebekka, que se muda para o reino da Suécia com suas filhas, Elvira e Alma, para se casar com Otto, senhor abastado e pai de Agnes – sua enteada, representando a Cinderela clássica neste cenário. Com a morte repentina do patriarca, a família mergulha na ruína financeira e, diante de um príncipe prestes a escolher sua futura esposa, Rebekka vê no casamento de Elvira ou Agnes a única chance de sobrevivência.

Para conquistar o príncipe Julian, medidas extremas são adotadas em competição pela perfeição física. As irmãs frequentam uma espécie de escola de etiqueta, compartilhando o espaço com milhares de outras jovens em busca da mesma aprovação em um baile com data marcada. Fascinada pela possibilidade de conquistar a alteza, Elvira submete-se a procedimentos dolorosos e extremos: o nariz é quebrado e recolocado; o aparelho dentário arrancado; cílios postiços costurados às pálpebras e ovos de tênia ingeridos para manter o peso baixo. Cada intervenção supera a anterior, enquanto os sons de gorgolejos vindos de seu estômago ecoam em momentos inoportunos, lembrando constantemente o preço físico e emocional de sua obsessão.

Apesar de tudo, com o objetivo de cativar o pretendente e alcançar o status dos sonhos, a meia-irmã feia mantém-se esperançosa, mergulhando em devaneios enquanto se imagina em um turbilhão de felicidade conjugal. No entanto, sua saúde se deteriora quase sem que perceba, e, com o passar do tempo, a transformação física se conclui, afastando-a cada vez mais de sua própria identidade. 

Elvira ainda enfrenta os desafios impostos por sua bela irmã “postiça”, que, sem grandes esforços, se destaca entre as demais, levando-a a tentar impedi-la de ir ao baile. Agnes, a verdadeira Cinderela, é obrigada a cumprir apenas tarefas domésticas e afastada das ambições da madrasta quanto ao casamento. Determinada a se libertar das amarras familiares, consegue participar secretamente do evento, dançar com o príncipe e deixar para trás um sapato que desencadeia o caos e o clímax da trama.

O príncipe, tal como na célebre cena do conto, busca a jovem cujo pé se encaixe no sapato. A essa altura, a protagonista já não é a mesma há muito tempo; exausta, chega a cortar os dedos dos pés na tentativa de calçá-lo, perde cabelos e dentes, expulsa a tênia ingerida e retorna ao estado de “feiura”.

No desfecho desse trágico episódio, a alteza visita as casas do reino, encontra Agnes, cujo pé se encaixa perfeitamente no sapatinho, e a leva para se casar, encerrando o ciclo de sofrimento da outrora esperançosa protagonista, que opta por fugir de casa com sua irmã biológica, Alma, deixando Rebekka para trás.

Nesse sufocante universo vitoriano, é evidente que toda promessa de “felizes para sempre” se constrói sobre a dor daqueles que sangram para caber no molde. As imagens impactantes e a narrativa ousada funcionam como crítica à superficialidade e à objetificação, mostrando que o terror não reside apenas no sangue ou na dor, mas nas consequências invisíveis de tentar corresponder a um ideal impossível.

Mais do que uma crítica à obsessão com a estética, o filme questiona a própria noção de valor humano, evidenciando como a sociedade marginaliza aqueles que não se enquadram em normas rígidas, conduzindo-os a caminhos autodestrutivos. O horror corporal, portanto, é explorado de forma literal e simbólica, revelando a violência silenciosa que acompanha os padrões de beleza e transformando o sofrimento em moeda de troca para alcançá-los.

Para os amantes de cinema que apreciam narrativas que combinam horror, melancolia e crítica social, a obra vale a pena conferir.

Por Manoela Muniz


Referências:

Imagem de destaque extraída de material promocional do filme.

The Ugly Stepsister (2025) – Emilie Kristine Blichfeldt. Letterboxd, 2025. Disponível em: https://letterboxd.com/film/the-ugly-stepsister/.

Imagens vinculadas ao corpo do texto disponíveis em: IMDB-Fotos_A Meia-Irmã Feia


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