A Encruzilhada entre Fé e Saúde
No Brasil, a saúde mental enfrenta uma crise silenciosa. Com altos índices de depressão, ansiedade e sofrimento psíquico, a população frequentemente se depara com um sistema público sobrecarregado e um setor privado inacessível para grande parte dos brasileiros. Nesse vácuo, cresce o papel de religiões e práticas espirituais não hegemônicas, como o candomblé, a umbanda, o espiritismo kardecista e tradições indígenas e afro-brasileiras, no acolhimento de pessoas em sofrimento.
Esses espaços, historicamente marginalizados e alvo de preconceito, têm se revelado como verdadeiros núcleos comunitários de escuta, orientação e suporte emocional. O acolhimento oferecido por eles desafia os limites do modelo biomédico tradicional, que frequentemente reduz a saúde mental a desequilíbrios químicos e ignora aspectos simbólicos, afetivos e culturais da experiência humana.
O Modelo Biomédico e Suas Limitações
A medicina ocidental moderna, baseada em evidências e protocolos clínicos, consolidou-se como a principal forma de abordagem à saúde mental. Ela opera a partir de diagnósticos padronizados (como os definidos no DSM ou na CID), com ênfase em psicofármacos e psicoterapia cognitivo-comportamental. Apesar de sua eficácia em muitos casos, o modelo biomédico tem sido alvo de críticas por sua tendência à medicalização excessiva e por negligenciar contextos sociais, raciais, espirituais e subjetivos.
Vários estudos acadêmicos apontam que, em comunidades vulnerabilizadas, a relação com o sofrimento psíquico não se restringe à lógica dos sintomas e diagnósticos. Em muitos contextos, a dor emocional é lida como resultado de fatores espirituais, relacionais ou energéticos. Quando essas formas de compreender o sofrimento são ignoradas, a adesão ao tratamento convencional tende a ser mais baixa, ou simplesmente inexistente.
Religiões Não-Hegemônicas como Espaços de Cuidado
O Brasil é um país profundamente plural em termos religiosos. Embora o cristianismo hegemônico (católico e evangélico neopentecostal) concentre a maioria da população, há uma diversidade significativa de expressões espirituais que seguem vivas, especialmente entre populações negras, indígenas e periféricas.
No candomblé e na umbanda, por exemplo, o cuidado espiritual está intrinsecamente ligado à ideia de equilíbrio de forças, ancestralidade, orixás e entidades. A saúde, nessas religiões, é vista de forma integral: corpo, mente e espírito não se separam. As práticas rituais, como os banhos de ervas, os ebós, os passes e as consultas com entidades, não apenas oferecem alívio simbólico, mas também criam redes de apoio comunitário.
A psicologia social e a antropologia vêm destacando o papel terapêutico desses espaços, que funcionam como formas de cuidado comunitário e subjetivo. Em vez de focar no “conserto” do indivíduo, muitas dessas práticas se concentram na restauração da harmonia com o entorno, família, ancestralidade, natureza e espiritualidade.
A Escuta como Ferramenta Terapêutica
Um dos principais aspectos que diferenciam esses espaços espirituais é a escuta ativa, sem julgamento. Enquanto o modelo clínico frequentemente depende de uma escuta técnica e objetiva, a escuta nas religiões afro-brasileiras ou no espiritismo kardecista é mais afetiva, simbólica e relacional. Essa escuta não busca rotular ou nomear transtornos, mas reconhecer a dor e acolhê-la.
Essa abordagem tem sido estudada, inclusive, em programas de saúde pública. O Ministério da Saúde do Brasil já publicou materiais reconhecendo práticas integrativas e complementares de cuidado, entre elas o uso de plantas medicinais, terapias corporais e saberes tradicionais de matriz africana e indígena. Ainda assim, o preconceito institucional persiste, e muitas dessas práticas seguem fora dos serviços formais de saúde.
O Racismo Religioso e os Obstáculos ao Reconhecimento
Apesar da contribuição efetiva dessas religiões ao cuidado em saúde mental, elas ainda são alvo de violência e discriminação. O racismo religioso, termo que descreve a perseguição às religiões de matriz africana por meio de discursos que associam seus rituais à criminalidade ou ao “mal”, dificulta o reconhecimento desses espaços como legítimos produtores de cuidado.
Muitos terreiros operam à margem da legalidade, sem apoio estatal, enfrentando ameaças, ataques e destruição de seus espaços físicos. Essa invisibilidade institucional compromete a possibilidade de articulação entre saberes tradicionais e políticas públicas de saúde.
Espiritualidade, Ciência e o Caminho do Diálogo
Importantes universidades brasileiras, como a UFRJ, a USP e a UFBA, têm desenvolvido pesquisas sobre a intersecção entre saúde mental e espiritualidade, propondo a valorização de saberes plurais no cuidado psíquico. A Organização Mundial da Saúde (OMS), inclusive, já reconheceu que a espiritualidade é um dos componentes fundamentais da saúde integral, ao lado do bem-estar físico, mental e social.
O desafio atual é criar pontes entre ciência e espiritualidade, medicina e tradição, sem hierarquizar ou reduzir um saber ao outro. As práticas religiosas não hegemônicas não devem substituir a medicina, mas tampouco devem ser tratadas como inferiores ou perigosas por princípio.
A proposta de um cuidado integral, que considere a subjetividade, a cultura, a fé e a comunidade, exige que os profissionais da saúde estejam abertos ao diálogo com outros saberes e formas de cura.
Conclusão
No cruzamento entre a fé e a dor psíquica, muitas pessoas encontram nas religiões não hegemônicas aquilo que a medicina muitas vezes ainda não oferece: um espaço de escuta, pertencimento e sentido. Ignorar esse fenômeno é não apenas negligenciar um campo vital da vida humana, mas também reforçar as exclusões históricas que se impõem sobre corpos racializados, pobres, periféricos e espirituais.
O cuidado em saúde mental, para ser verdadeiramente humano, precisa ultrapassar os muros dos consultórios e reconhecer o valor dos saberes que nascem do chão, do canto, do terreiro, da floresta e da fé.
Publicado/Editado/Escrito por Bruno Miguel Z.A.S.B.C.
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