Num toque de tela, desliza-se para a direita ou esquerda, aprova-se ou descarta-se uma pessoa. Em poucos segundos, decide-se se vale a pena investir naquilo que, em outros tempos, poderia levar dias, semanas ou meses para florescer. No século XXI, o amor se adaptou à lógica da eficiência. E, cada vez mais, as relações afetivas passam a seguir os mesmos princípios que regem o mercado: oferta, demanda, performance e descartabilidade.
O Crescimento dos Aplicativos de Relacionamento
O primeiro grande marco do namoro digital foi o surgimento do Tinder, em 2012. De lá para cá, o número de usuários de aplicativos de relacionamento explodiu. Segundo um levantamento da Statista, em 2023 havia mais de 366 milhões de pessoas utilizando apps de encontros no mundo. Só no Brasil, uma pesquisa da Cupido.tech apontou que mais de 30 milhões de brasileiros estão em ao menos uma dessas plataformas.
Esses números não apenas revelam uma mudança de comportamento, mas denunciam uma transformação estrutural: o amor passou a ser mediado por algoritmos que operam com base em interesses comerciais e padrões de engajamento. A experiência afetiva se tornou um produto, ou melhor, uma série de micro-produtos empacotados em perfis, likes e matches.
A Lógica da Performatividade
Nos aplicativos, é preciso “vender-se” bem. A construção do perfil envolve escolhas estratégicas: a melhor foto, o texto mais cativante, as palavras-chave que maximizam as chances de ser encontrado. Como afirma a socióloga Eva Illouz, em seu livro “O amor nos tempos do capitalismo tardio”, o amor contemporâneo é profundamente influenciado por uma lógica de mercado, em que o valor simbólico do indivíduo é constantemente avaliado e comparado.
Essa performatividade não se encerra no perfil: ela se estende às conversas, aos encontros e, muitas vezes, à própria ideia de se estar apaixonado. “Vivemos uma espécie de fetichização da conexão”, diz a psicóloga Helena Prado, pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB). “Mais importante do que o vínculo é a sensação de que somos desejáveis, procurados, validados.”
Relações Líquidas e Corpos Descartáveis
O sociólogo Zygmunt Bauman, ao cunhar o termo “amor líquido”, talvez não previsse a rapidez com que os laços se tornaram tão frágeis. Em um contexto em que o próximo match está a um clique de distância, o compromisso parece um risco alto demais, e a frustração, um fardo a ser evitado.
Segundo dados da Pew Research Center (2022), 56% dos usuários de aplicativos de namoro disseram sentir que os apps os fazem acreditar que sempre existe alguém “melhor” à espera. Isso cria um ciclo vicioso de insatisfação e busca constante. O desejo deixa de ser orientado pela construção mútua e se transforma em uma corrida por novidade, prazer instantâneo e validação.
Além disso, o critério de escolha está cada vez mais pautado por filtros que reforçam desigualdades. Em um estudo da Cornell University, pesquisadores descobriram que algoritmos de apps de relacionamento tendem a reforçar padrões racistas, gordofóbicos e classistas, ao promover perfis mais próximos de padrões estéticos hegemônicos e marginalizar corpos dissidentes.
O Amor Sob a Lógica do Capital
Essas plataformas são, afinal, empresas. Operam com fins lucrativos e utilizam dados dos usuários para manter o engajamento e, consequentemente, o faturamento. O amor, ou ao menos sua promessa, se converte em combustível de uma indústria bilionária. Em 2023, o setor de aplicativos de relacionamento movimentou mais de 5 bilhões de dólares no mundo. E segue crescendo.
“É um mercado que lucra com a carência e com o tédio”, afirma o antropólogo Gabriel Martins, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “A estrutura é montada para que as pessoas nunca se sintam plenamente satisfeitas. Isso garante que continuem buscando, clicando, consumindo.”
A lógica lembra muito a do consumo no capitalismo tardio: cria-se a necessidade, oferece-se o produto, e logo esse produto já se torna obsoleto, abrindo espaço para o próximo.
Resistência, Reflexão, Reencantamento
Ainda assim, é impossível ignorar os encontros reais que nascem desses meios. Muitas histórias de amor, amizade e parceria floresceram a partir de um match. Os aplicativos são ferramentas, e como toda ferramenta, seu uso depende do contexto e das intenções.
Mas é preciso cautela. Em um mundo onde tudo se converte em mercadoria, manter a afetividade como um espaço de resistência pode ser um ato revolucionário. Desacelerar, escolher com cuidado, dialogar com profundidade, tudo isso pode ser um enfrentamento ao automatismo afetivo imposto pelos algoritmos.
Talvez o desafio seja justamente esse: reencontrar no amor um território que escape, ainda que por brechas, da lógica do capital. Um lugar onde não se esteja vendendo nem comprando, mas simplesmente sendo.
Publicado/Desenhado/Escrito por: Bruno Zagati A. S. B. C.
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