Análise da ANPD sobre a coleta de íris em troca de criptomoedas

No início de 2025, a empresa Tools for Humanity (criadora do projeto WorldCoin, liderado pelo dono do OpenAI – empresa criadora do Chat GPT) movimentou alguns lugares e shoppings das cidades brasileiras ao propor a venda de íris em troca de criptomoedas. Apesar de ter chegado ao Brasil apenas neste ano, a empresa já tentou realizar essa mesma atividade em outros países como Portugal e Espanha, sendo todas as vezes suspensas por determinação de seus respectivos órgãos regulatórios.  

A coleta da íris faz parte do Projeto WorldCoin, e tem como principal objetivo criar o que eles chamam de WorldID, uma espécie de “passaporte/identidade digital” da humanidade, que será capaz de identificar quais ações são provenientes de um humano e não uma IA. Esse projeto surge de uma preocupação da Tools for Humanity com o avanço das inteligências artificiais generativas na criação de textos, imagem e voz, sendo cada vez mais difícil identificar as distinções entre seres humanos e a IA. Em outras palavras, o WorldID é uma maneira mais eficaz de substituir o que já estamos acostumados a utilizar através dos métodos de CAPTCHAs e que facilmente podem ser falhos e derrotados pela IA.

Para que essa WorldID funcione é preciso que o usuário vá até um dos pontos de coleta da Tools for Humanity que oferecem o scanner da íris por meio de seu dispositivo chamado “Orb”. Os olhos dos usuários são escaneados pelo Orb, que analisa os padrões de sua íris e o transforma em um código que servirá de base para criar a sua WorldID. São oferecidas criptomoedas como forma de pagamento pela coleta dos dados pessoais, sendo esse o maior incentivador para a participação da população no projeto.  

A ideia desenvolvida pela Tools parece ser muito relevante quando pensamos na quantidade de golpes e fraudes digitais que poderiam ser evitadas por meio dessa identificação. No entanto, ao realizar a coleta da biometria da íris das pessoas, a empresa não deixou claro as informações sobre como o procedimento poderia afetar ou não os seus usuários. A íris é um método de identificação ainda mais eficaz que a biometria facial, uma vez que envolve o scanner mais detalhado do seu formato que quase não muda ao longo dos anos. São essas características que corroboram para que haja mais cautela sobre quem e como esses dados podem ser manuseados.

Em novembro de 2024, antes da Tools for Humanity iniciar a operação de coleta no Brasil, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) instaurou o procedimento de fiscalização (n° 00261.006742/2024-53), a fim de analisar as práticas de tratamento de dados pessoais implementados pela empresa e a sua conformidade com a LGPD (Lei nº 13.709/2018). Como resposta, a  empresa forneceu documentações importantes como  Relatório de Impacto à Proteção de Dados (RIPD), as Políticas de Privacidade e explicou aspectos da sua operação e anonimização dos dados coletados pelo dispositivo “Orb”.

Apesar dessas informações serem relevantes, o principal aspecto destacado na fiscalização  foi a contrapartida financeira ofertada aos titulares de dados. Isso porque, conforme explanado pelo agente de tratamento, a base legal utilizada para justificar a coleta de dados na atividade seria o consentimento, cujos requisitos para sua validade estão no artigo 5°, XII, da LGPD: a manifestação livre, informada e inequívoca pelo titular.  A compensação oferecida pela Tools  for Humanity, por sua vez,  poderia prejudicar a manifestação livre em relação ao fornecimento do consentimento, como destacado pela ANPD

A ANPD explica que a vulnerabilidade e hipossuficiência torna ainda maior o peso do pagamento oferecido para a tomada de decisão dos titulares. Dessa maneira, a manifestação da vontade é menos autônoma e mais influenciada por fatores externos, o que prejudica o qualificador “livre” exigido pela LGPD para essa hipótese legal e colabora para o vício de consentimento.

Nesse sentido, em caso semelhante no Chile, a ONG Amaranta realizou uma pesquisa para mapear os tipos de perfis de pessoas, em especial mulheres, que venderam os seus dados em troca de criptomoedas. Nas entrevistas realizadas pela ONG, muitos disseram que sequer sabiam o que eram criptomoedas e as consequências da coleta de seus dados. O relatório da ONG reforça ainda mais a preocupação da ANPD em suspender a compensação financeira como forma de obter o consentimento de seus titulares para a coleta.

Outra questão levantada no procedimento é que os titulares dos dados não podem revogar o consentimento ou solicitar que seus dados sejam eliminados. Isso porque a Tools declara que a única informação mantida é o código da íris, sendo esse um dado anonimizado. A partir da anonimização, esses dados deixam de ser considerados pessoais e dão margem para a Tools não precisar garantir aos titulares o direito de eliminação dos dados coletados.

Nesse sentido, a Tools interpôs recurso contra a decisão da ANPD que determinou a suspensão da compensação financeira, sendo esse rejeitado. Apesar da empresa ter oferecido adequações, como o lançamento de um novo aplicativo e mais informações em português para os usuários, a ANPD manteve a sua proibição, tendo em vista que ainda há contraprestação financeira pela coleta dos dados sensíveis. Além disso, o pagamento aos titulares tem se mostrado mais motivador do que o próprio serviço oferecido, sendo então essa a principal finalidade pelo qual o titular se sujeita a coleta de seus dados.

Para além do posicionamento da ANPD, pesquisadores especialistas no tema defendem que a proteção de dados pessoais não deve ser baseada em proibições absolutas ou em uma visão paternalista de incapacidade decisória, como no caso da manifestação livre para o consentimento válido. Em vez disso, ressaltam a importância da implementação de salvaguardas concretas que permitam aos titulares exercerem seu direito à autodeterminação informativa de maneira efetiva – ou seja, com acesso a informações adequadas sobre o tratamento de seus dados e que de fato entendam as consequências da atividade de tratamento. 

O processo de fiscalização da ANPD sobre o caso ainda está em curso e a última decisão proferida em março de 2025 estabeleceu multa diária no valor de R$50.000,00 caso a empresa desrespeite a suspensão da compensação financeira. Sendo assim, a empresa ainda está sujeita às análises da ANPD e à regularização de suas operações em conformidade com a LGPD.  

Referências Bibliográficas:

AGÊNCIA ESTADO. ANPD nega recurso da World ID e ‘venda de íris’ é proibida no Brasil. UOL, São Paulo, 11 fev. 2025. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2025/02/11/anpd-nega-recurso-da-world-id-e-venda-de-iris-e-proibida-no-brasil.htm​. Acesso em: 5 abr. 2025.

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LEONARDI, Marcel. Consentimento e incentivos: Além do falso paternalismo. Migalhas de Peso, fevereiro, 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/425521/consentimento-e-incentivos-alem-do-falso-paternalismo. Acesso em 06 abr. 2025. 

REDAÇÃO. Coleta de íris está permitida desde que não remunere voluntários. Forbes Brasil, São Paulo, 25 jan. 2025. Disponível em: https://forbes.com.br/forbes-tech/2025/01/coleta-de-iris-esta-permitida-desde-que-nao-remunere-voluntarios/​. Acesso em: 5 abr. 2025.

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