A Solidão Invisível do Estudante de Primeira Geração

O sentimento de deslocamento de quem é o primeiro da família a ingressar no ensino superior e os desafios silenciosos que afetam sua permanência

Eles chegaram à universidade carregando o orgulho da família e o peso do ineditismo. São os primeiros. Os primeiros a sentar em uma cadeira universitária, a se verem no campus, a tentarem entender o que é um “período letivo”, um “protocolo acadêmico” ou o que fazer com a matrícula travada no sistema. Enquanto muitos colegas debatem sobre intercâmbio ou viagens de férias, eles pensam nas contas, nos ônibus lotados e no silêncio de casa, onde ninguém sabe exatamente o que eles estão vivendo.

Essa é a realidade dos estudantes de primeira geração no ensino superior: filhos de famílias que não tiveram acesso à universidade e que, agora, pisam em um espaço que mistura conquista com deslocamento.

“Sou o primeiro da minha família e ainda parece que não pertenço”

Segundo dados do IBGE, cerca de 70% dos estudantes de universidades públicas vêm de famílias em que nenhum dos pais possui diploma universitário. São chamados de estudantes de “primeira geração”. Essa conquista, no entanto, carrega desafios profundos, que vão desde o choque cultural até questões psicológicas que impactam diretamente a permanência acadêmica.

Esse sentimento tem nome: síndrome do impostor acadêmico. Um fenômeno comum entre estudantes de primeira geração, onde a pessoa sente que está “enganando” por estar ali, e teme ser desmascarada a qualquer momento. Isso afeta a saúde mental e gera um ciclo de insegurança

Universidade: lugar de conquista ou campo de batalha silencioso?

Para estudantes de primeira geração (aqueles que são os primeiros de sua família a alcançar o ensino superior ) esse sonho vem frequentemente acompanhado de solidão, insegurança e uma sensação constante de não pertencimento. Entrar na universidade, para esses jovens, é uma vitória. Mas permanecer nela é outra guerra. Muitos vivem um cotidiano sem referências: os pais não sabem o que é um TCC, amigos de infância já abandonaram a escola há tempos e, frequentemente, o estudante se vê como “diferente demais” para se encaixar.

“Nunca tivemos uma conversa sobre ensino superior. Ainda é difícil explicar para eles o que é faculdade e pós-graduação. Sou o primeiro do meu núcleo a estar na universidade”, afirma Diego, morador de Vespasiano, na Grande BH. Seus pais têm um pequeno açougue, e ele enfrenta desafios financeiros e emocionais para continuar seus estudos. 

De acordo com a Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), estudantes de primeira geração compõem uma parte significativa dos alunos beneficiados por políticas de cotas e programas de acesso, como o Prouni e o Sisu. No entanto, apesar do ingresso, a permanência ainda é um desafio, tanto pelas dificuldades financeiras quanto pelo abismo cultural.

“Meus colegas falavam de viagens, restaurantes, cursinhos particulares. Eu só ficava em silêncio. Nem sabia onde era o restaurante universitário direito, nos primeiros meses”, conta uma estudante da USP, em relato ao Jornal da USP. Foi ao buscar apoio psicológico no campus que ela descobriu o projeto Grapusp, um grupo de acolhimento voltado justamente para ajudar estudantes em situação de vulnerabilidade a permanecerem na universidade.

O Grapusp, criado em 2019, oferece rodas de conversa, escuta ativa e suporte psicológico coletivo. “A ideia é criar vínculos e afetos, para que o aluno perceba que não está sozinho”, explica a psicóloga Adriana Lima, uma das coordenadoras do grupo.

Segundo um estudo de 2022 do Instituto Semesp, 35% dos estudantes de primeira geração relatam já ter pensado em desistir da faculdade por se sentirem deslocados, desacreditados ou emocionalmente sobrecarregados. A falta de referências familiares e o medo constante de fracassar pesam.

“Esses alunos carregam o orgulho da família, mas também uma carga de responsabilidade que ninguém da mesma idade deveria carregar sozinho”, explica a socióloga Mariana Albuquerque, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas. “Eles se veem obrigados a ‘dar certo’ por todos, sem ter a quem recorrer quando enfrentam dificuldades.”

Além do aspecto emocional, há uma clara desigualdade de acesso à capital cultural. “É comum que esses estudantes sintam que precisam ‘aprender a ser universitários’, enquanto outros já chegam sabendo como navegar esse espaço”, comenta o professor Daniel Cruz, da Faculdade de Educação da USP.

Janaina Quirino, de 28 anos, também compartilha as dificuldades enfrentadas. “Foi sofrido. Prestei Enem cinco vezes e consegui uma bolsa integral para um curso de fotografia. Mas não pude estudar pois só a câmera fotográfica custava R$2 mil. Meu pai não tinha como pagar”, explica. Ela enfrentou desafios financeiros e de adaptação ao ambiente universitário. 

A trajetória dos estudantes de primeira geração continua marcada por barreiras silenciosas, mas também por resistências corajosas. Como mostra a experiência de Diego e Janaína, às vezes, tudo o que alguém precisa para continuar é encontrar uma rede de apoio e acreditar que seu lugar também é na universidade.

Barreiras invisíveis que pesam no dia a dia

A pressão por excelência é outro fator. Muitos estudantes de primeira geração sentem que não podem falhar, pois carregam os sonhos da família. O fracasso, mesmo pequeno, parece ser um abalo gigante. Eles não têm a rede de apoio emocional ou financeira que muitos colegas possuem. E o tempo, muitas vezes, é curto: precisam estudar, trabalhar, cuidar de familiares e ainda lidar com a culpa por “não estar ajudando o suficiente em casa”.

De acordo com um estudo da UNESPAR, 75% dos seus alunos de graduação são estudantes de primeira geração. Muitos deles trabalham durante o dia e estudam à noite, sem tempo para projetos de pesquisa, estágios ou atividades extracurriculares. “A meritocracia é uma falácia quando partimos de pontos tão diferentes”, comenta a professora Luísa Tavares, que coordena um projeto de extensão para apoio estudantil na universidade.

Como garantir a permanência?

A permanência desses alunos depende não só de programas de bolsa e assistência, mas também de uma mudança de cultura dentro das universidades. Acolher esses estudantes com escuta, representatividade e apoio acadêmico é urgente. Muitas instituições têm criado núcleos de apoio psicológico, mentoria entre pares e iniciativas de inclusão.

Além disso, especialistas defendem que as universidades valorizem saberes diversos e respeitem trajetórias distintas. “A inclusão não pode ser só estatística, tem que ser cultural e afetiva”, diz a pesquisadora Gláucia Silva, da UFRGS.

Ser o primeiro é bonito, mas é solitário

No fim do dia, o estudante de primeira geração volta para casa com a cabeça cheia, o corpo cansado e o coração dividido entre orgulho e exaustão. Ele sabe que está abrindo caminho, mas também sente falta de alguém que entenda o que é isso. Seu desafio não é apenas acadêmico: é existencial.

O Brasil precisa olhar para esses jovens não apenas como números que ajudam nas metas de inclusão, mas como pessoas reais, com sonhos, medos e histórias complexas. E precisa garantir que eles não só entrem na universidade, mas que também possam ficar, aprender, pertencer, resistir.

Fontes citadas:

Escrito, Desenhado e Publicado por Bruno Z. A. S. B. de Castro


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