TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO (WITNESS FOR THE PROSECUTION)

Fonte: Billy Wilder, Thomas Mann and Arnold Schoenberg: Los Angeles Exiles

Crítica escrita por Juan Tomás Soliano

“Witness for The Prosecution”: Dirigido por Billy Wilder. Com: Charles Laughton, Marlene Dietrich, Tyrone Power, Elsa Lanchester, Henry Daniell, Ian Wolfe e Norma Varden. 

Poucos nomes em Hollywood permaneceram tão sólidos e tão memoráveis quanto o do brilhante produtor, diretor e roteirista americano Billy Wilder. Desde suas comédias picantes como Quanto Mais Quente, Melhor, de 1959, como seus mais densos filmes noir, a exemplo do intrigante Sunset , de 1950, Wilder foi ao longo de mais de cinco décadas um regente de obras-primas no cenário do cinema estadunidense. Entretanto, em um currículo díspar como este, é fácil perder esmeraldas pelo meio caminho. Dentre essas, esta joia de 1958 baseada na obra da mais célebre autora de mistérios Agatha Christie: Witness For The  Prosecution ou Testemunha de Acusação, ‘drama de tribunal’ que devido ao final surpreendente e suas constantes reviravoltas narrativas gravou em seus créditos finais o pedido para que os espectadores que acabaram de assistir ao filme não revelassem o final da obra, a fim de que a surpresa se mantivesse entre o público.

Baseado na peça homônima de Agatha Christie (Assassinato no Expresso  Oriente e Morte no Nilo), o filme narra a volta do grande advogado de defesa Sir Wilfrid às cortes criminais com um caso misterioso de assassinato. O réu, vivido por Tyrone Power, é acusado de ter assassinado uma rica viúva de meia-idade com o objetivo de receber a herança dela. Wilfrid, impossibilitado de se esquivar do caso pela atração que sente pelos tribunais, encontra-se, então, amarrado a uma teia de intrigas ao descobrir que o único álibi de seu cliente é sua fria esposa Christine Vole, testemunha chave para a defesa que torna a ser a tão famigerada testemunha de acusação do título.

Um dos trunfos principais para a dinamicidade do filme está em seu roteiro, escrito por Wilder em parceria de Harry Kurnitz. Sendo este um exemplar dos famosos ‘dramas de tribunal’, a verborragia presente na sua estrutura é quase uma obrigatoriedade do gênero. São frequentes as sequências em que três ou quatro personagens se encontram presos em cômodos destrinchando fatos ou revelando novas informações. Para roteiristas amadores, filmes assim são impossíveis de serem feitos sem ficarem arrastados ou parados demais. Aqui, o caso é justamente o oposto. Wilder, vencedor de três Óscares de Melhor Roteiro, demonstra domínio exemplar da retórica para dar personalidade e agilidade ao texto, adicionando aqui e acolá seus característicos toques de humor. Além disso, trabalhando já com a obra de uma autora que, por natureza, é exímia condutora de longas linhas de intrincado diálogo, o desafio maior para a dupla Wilder-Kurnitz foi transpor esse material para as telas e preencher as lacunas deixadas por Christie com detalhes que dessem profundidade à trama sem tirar o foco principal da história: a resolução do pernicioso caso. Uma das adições, por exemplo, foi o estado debilitado de saúde do protagonista, que ainda está se recuperando de um ataque do coração que quase o matou. O detalhe em questão não só adiciona camadas de profundidade ao personagem que deveria se mostrar indefeso- coisa que, diga-se assim de passagem, com certeza não é-, como também marcas de suspense nas cenas em que as temperaturas no tribunal chegam às alturas e nos perguntamos aonde isso pode levar nosso protagonista. Além de tudo, é impossível não destacar o tremendo final desse longa, que, devo admitir, até hoje consegue ser surpreendente. Mas o filme, diferentemente de outros com reviravoltas desse tipo, sobrevive muito bem a posteriores visitas ocasionais, não utilizando de seu plot twist somente para encantar o público, e sim para dar um final de ouro para uma obra já completa- e tudo isso se deve a um trabalho de construção narrativa árduo que só empenhados escritores conseguem alcançar.

Assim, para suportar o peso de um roteiro tão meticuloso, apenas um diretor de mesmo calibre poderia conduzir esse longa, papel que sem sombra de dúvida mais do que se encaixa no perfil do grande mestre. Billy Wilder é fruto da tradição hawkiana, alcunhada dessa forma em referência ao titã Howard Hawks (Rio Bravo e À Beira do Abismo), que se caracterizava por uma direção objetiva, uma câmera quieta e um arranjo milimétrico dos personagens pelo cenário em detrimento de cortes excessivos. Esse estilo de direção que Wilder adotou aqui, além de ser costumeiro do diretor, se mostra afortunado pelo fato de ter sido inspirado na direção teatral, assim aproximando muitas das cenas de seu filme a uma peça propriamente. A geografia das cenas, especialmente, é um exemplo da influência do teatro na direção, já que Wilder opta por planos abertos, como se gravasse palcos inteiros no meio de um ato. Ao mesmo tempo em que teatro e cinema convergem, o hábil realizador sabe também criar momentos que, de fato, podem ser chamados de cinematográficos. Cenas desse gênero podem ser vistas logo na sequência inicial do longa, na qual uma troca intensa de diálogos se estende por quase 30 minutos e, ao longo de todo esse período, a cena consegue ser tudo, menos maçante. Os atores se deslocam pelos cômodos e interagem com o cenário e uns com os outros, aproveitando cada centímetro de tela projetado para o jogo de câmera esplêndido de Billy Wilder, que na simplicidade revela momentos de primor cinematográfica incalculável. Momentos assim que revelam que a destreza de um diretor, muitas vezes, não deve ser medida pelo quanto de sua direção é  percebida pelo público, como fazia o revolucionário Orson Welles (sinceramente, nota-se que por mais brilhante que seja, a direção de Welles às vezes se mostra muita engessada em certos filmes), e sim pelo fato dela ser invisível aos olhos do espectador, como se não existissem barreiras entre a realidade e a ficção presente na tela, fazendo da plateia, igualmente, agente ativo nessa história.

Fonte: Billy Wilder on the set of “Witness for the Prosecution,” 1957 | Courtesy of the USC Libraries — Cinematic Arts Collection. Disponível em Selency.uk

A fim de dar vida às acirradas partidas semânticas de Christie e cor aos contornos criativos do vencedor de dois Óscares de Melhor Direção, nada melhor que o trabalho quase perfeito desempenhado pelo elenco alistado para o filme. O veterano Tyrone Power, em uma das últimas performances de sua carreira antes do inesperado óbito que teria um ano após as filmagens desse longa, entrega umas das interpretações mais dissonantes e, sobretudo, impressionantes de sua carreira. O ator, que tinha a fama de espadachim devido a filmes como A Marca do Zorro e O Cisne Negro, tinha o desejo de ser mais que um mero rosto bonito frente às telas, imagem renegada a ele por anos, e se mostrar um ator de personagens- em Testemunha de Acusação, o ator revela seu talento e se mostra ir muito além de um galã. Constroi, à medida em que o longa passa, facetas serenas e amigáveis para o público, com um charme quase infantil devido às súplicas que dispara do banco do réu, porém sempre carregando um jeito enigmático, do tipo que revela saber muito mais do que conta. Elsa Lanchester, surpreendentemente um dos poucos membros do elenco que levou algum prêmio para casa (recebeu um Globo de Ouro como Atriz Coadjuvante pelo seu papel) trabalha com o arquétipo mais próximo que existe no filme de um alívio cômico. Sua enfermeira Miss Plimsoll conquista o público nas trocas de farpas constantes que trava com o debilitado, porém sisudo, Sir Wilfrid (as cenas que ele esconde dela seus charutos e seu licor e o jeito com que ela o chama de ‘Wilfrid, a Raposa’ são puro ouro). Seu jeito rabugento irremediável misturado a essa aura materna acolhedora consegue encantar até o mais azedo dos espectadores, com exceção de Sir Wilfrid, que se prova a todo instante um empecilho maior e maior para o trabalho a qual Plimsoll foi designada: fazê-lo repousar. Mesmo num elenco tão nivelado em se tratando de talentos, no entanto, dois nomes se destacam nos créditos pelas suas interpretações magistrais: Marlene Dietrich como a misteriosa testemunha da acusação Christine Vole e o vigoroso Charles Laughton como o advogado de defesa Sir Wilfrid.

Fonte: Canto dos Clássicos – Testemunha de Acusação – 1957 (Resenha)

Marlene Dietrich, famosa musa do cinema noir reconhecida pelo papeis que desempenhou como femme fatale (‘mulher fatal’, literalmente do francês), não se distancia tanto assim de seu passado, à primeira vista, pelo menos. Os enigmas que circundam a personagem título do longa são  escondidos pela atriz germânica atrás de uma máscara petrificada esculpida em seu rosto, sendo que por trás de cada sorriso e cada olhar, pode estar escondendo uma nova mentira ou um novo punhal traiçoeiro. Suas cenas finais são de uma construção tão bem executada, partindo de silêncios a estrondosos gritos, que é de se admirar a academia ter ignorado tal grande performance durante as premiações- uma falta grave considerando o poder que a atriz tem sobre seu texto nas cenas em que aparece. Contracenando com a atuação enigmática de Dietrich, o protagonista vivido pelo ator e diretor britânico Charles Laughton esbanja vitalidade ao desempenhar seu papel. De início, pensamos que pelo seu estado debilitado, o ator daria menos vigor às suas falas ou evidenciaria uma fraqueza maior para o público, mas a atuação de Laughton vai de encontro a tais concepções. Seu falar é poderoso como o bater de um martelo e o controle que o ator demonstra sobre os discursos de seu personagem- que não são poucos ao longo do filme- é admirável. Admirável também é a pompa sobre a qual calca a personalidade de seu Sir Wilfrid: Ele representa todos os trejeitos típicos daquilo que seria um lorde inglês, desde seu queixo proeminente até detalhes mais discretos na forma como se porta com os objetos dados a ele em cena, como uma bengala ou um mero monóculo. Numa carreira tão longa quanto a do intérprete, é de se louvar que provavelmente seu melhor papel foi desempenhado aqui, sob a direção de Billy Wilder.

Entre tantos dramas e suspenses que se arrastam por entre cortes e tribunais, Testemunha de Acusação resiste ao teste do tempo justamente pela execução primorosa de seu roteiro afinado, direção habilmente executada e performances brilhantes. Por essas e tantas outras características que o filme pode ser alocado no panteão dos melhores exemplares desse gênero, sendo uma recomendação imperdível tanto para amantes de cinema como para juristas iniciantes ou calejados. Sua trama continua tão ligeira e astuta quanto a quase sete décadas atrás e, assim, é quase impossível de ser esquecido na história do cinema como uma das grandes obras de um dos maiores mestres. Após assistir ao filme, entretanto, caro leitor, não se esqueça das palavras que estamparam os seus posters: “Você vai falar sobre ele, mas por favor, não conte o final.”

Publicado por Bruna Valêncio de Jesus Santos


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