Sob autoria de Aly Muritiba, grande cineasta brasileiro, “A Fábrica” (2011) apresenta a cadeia, prisão ou casa de detenção — dentre outras tantas formas de referenciar esse espaço de privação de liberdade — com uma estética destemida, evidenciando um profundo humanismo em sua essência. Com essas características, o curta retrata as complexas relações entre pais e filhos, bem como as intrincadas maquinações necessárias para exercer justiça dentro de uma penitenciária.
De início, somos apresentados à Dona Lindalva, que prepara comida para levar ao filho na cadeia. É dia de visita. Em outro plano, o detento Metruiti faz a barba e veste suas melhores roupas para receber a mãe. É uma data especial e ele precisa fazer um telefonema; desse modo, sua mãe assume o risco de contrabandear um celular no presídio. Lindalva, meticulosamente, coloca o aparelho celular dentro de um preservativo e o esconde na própria vagina para passar pela revista.

A Fábrica (curta-metragem)
Dirigido por Aly Muritiba
Lindalva consegue entregar o celular ao filho. Metruiti, então, faz o telefonema. Do outro lado da linha, uma voz infantil é ouvida, acompanhada de conversas e risadas em meio a um ambiente festivo:
— Oi, pai.
— Oi, filha, tudo bem? Feliz aniversário, meu amorzinho.
— Pai, você vai poder vir ao meu aniversário hoje?
— Não, filha. Papai tem que trabalhar.
— Mamãe está trabalhando aí com você, pai?
— Não. A mamãe está em outra fábrica.
— Pai, eu nunca vou querer trabalhar em uma fábrica.
— O papai te ama muito — responde Metruiti, emocionado. Tenho que desligar agora, filha.
Ele desliga o celular e o destrói (para não ser descoberto).
O curta não pretende responder ou justificar a ação de Lindalva e Metruiti. E isso não será revisto aqui. Entretanto, podemos refletir sobre as conexões e laços familiares em ambientes onde parece não haver mais esperança. Por que uma mãe teve que contrabandear um celular na cadeia para que seu filho conseguisse dar feliz aniversário para a sua neta? Será que essa figura é apenas ficcional — fora de nossa realidade?
Direitos e garantias do encarcerado no Brasil
Com o surgimento da Constituição Federal de 1988, o Brasil salvaguardou os direitos fundamentais dos presos. Essa proteção reconheceu o detento como um sujeito de direito, não mais como mero objeto de execução penal. Conforme, pois, Paulo José da Costa Júnior, ex-professor de Direito Penal da USP, “o preso não se reduz a simples objeto de um processo administrativopenal. Deve ser considerado como titular de direitos e faculdades e não mero detentor de obrigações e ônus”.
O art. 5º inciso III e XLIX da Constituição Brasileira assevera:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.
XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.
Assim, é possível salientar a concepção de igualdade assegurada como direito constitucional — o imperativo da dignidade humana. Segundo Manoel Ferreira Filho, importante jurista, “o criminoso não deixa de ser homem, consequentemente deve ser tratado com respeito adequado e mantido em condições de sanidade”. É notório que o tempo em que o sistema prisional era visto como suplício ficou para trás: após 1988, as condições para preservar a dignidade da pessoa humana devem ser separadas do seu enquadramento penal, uma vez que o detento, mesmo diante de todas as dificuldades impostas pelo sistema prisional, continua a ser titular de direitos que devem ser garantidos pelo Estado, conforme preconiza nossa Constituição.
Ademais, outros direitos são assegurados ao preso. A Lei de Execução Penal (7.210/1984), dentre outras coisas, garante, em seu art. 41, inciso X:
Art. 41 Constituem direitos do preso:
X – visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados.
Da mesma forma, as Regras Mínimas da Organização das Nações Unidas (ONU) para o tratamento de Reclusos, documento que serve de eixo para legislação de vários países no liame do sistema penitenciário, dispõe:
Art. 37. Os reclusos devem ser autorizados, sob a necessária supervisão, a comunicarem-se periodicamente com as suas famílias e com amigos de boa reputação, quer por correspondência quer através de visitas.
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
O art. 227 do ordenamento constitucional diz:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Com a promulgação do texto constitucional, foi possível que houvesse “uma grande mobilização por parte da sociedade e de organizações voltadas à infância […] que reuniu mais de um milhão de assinaturas para pressionar o Congresso Nacional. Esse protagonismo popular deu início à construção da consciência coletiva sobre a necessidade de uma legislação mais completa sobre o tema”. Estava posta, daí, a Lei nº 8.069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), adotando uma série de regras internacionais.
Consoante Wilson Liberati, “devemos entender que a criança e o adolescente deverão estar em primeiro lugar na escala de preocupação dos governantes; devemos entender que, primeiro, devem ser atendidas todas as necessidades das crianças e adolescentes, pois o maior patrimônio de uma nação é o seu povo, e o maior patrimônio de um povo são suas crianças e jovens”.
Uma das preocupações do ECA é, sem dúvida, a convivência familiar, importante para o desenvolvimento moral, ético, social, educacional e religioso das crianças e adolescentes. O direito à convivência familiar é conceituado como um direito fundamental, garantindo que toda criança tenha o direito de viver com sua família natural, substituta, dentre outras possibilidades. À vista disso, o Estatuto determina:
Art. 19 É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral.
Mas como garantir esse direito caso os pais — uma das possibilidades de família — do menor estiverem presos?
Direito do menor a visitação periódica ao familiar em cumprimento de pena privativa de liberdade
O direito de visitação de crianças e adolescentes a familiares reclusos de liberdade encontra divergências. Se, de um lado, sustenta argumentos sobre o direito fundamental da criança e do adolescente ao convívio familiar, que é essencial para o seu pleno desenvolvimento, assim como o direito dos próprios representantes familiares a esse convívio; de outro lado, há o princípio da proteção integral, especialmente em relação aos riscos à saúde física e mental desse público vulnerável em uma penitenciária. .
À luz do paradigma da proteção integral, o argumento é de que a entrada de menores em um presídio , por ser um ambiente hostil ou impróprio , não atende a dignidade da pessoa humana em desenvolvimento. Sobre o assunto, Julia Bechara, Defensora Pública do DF, comenta que “se o problema para entrada de menores na penitenciária se encontra na impossibilidade de garantia de sua segurança, devem, então, ser providenciados os meios necessários para tanto, não se podendo atribuir ao próprio apenado as consequências da ineficiência do Estado”. O preso, pois, mesmo privado de liberdade, não deixa de ser filho, cônjuge, irmão ou pai.
Pensando nisso, a lei que garante a convivência de crianças e adolescentes com pais presos foi sancionada. A Lei Nº 12.962, de 8 abril de 2014, que altera o ECA, garante que “a condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, exceto na hipótese de condenação por crime contra o próprio filho ou filha, e a convivência será mantida por meio de visitas periódicas promovidas pelo responsável ou, nas hipóteses de acolhimento institucional, pela entidade responsável, independentemente de autorização judicial”.
Em suma, cabe refletirmos sobre as dinâmicas sociais nos presídios brasileiros, que, por vezes, desconhecemos. Com sua alegoria, Aly Muritiba transmitiu não apenas a situação do apenado e de sua mãe burlando uma regra prisional, mas também a figura de tristeza do familiar menor, privado de visitar seu genitor — mesmo que num ambiente ficcional. O direito do menor à visitação de seu familiar, além de ser assegurado por nosso ordenamento, é uma maneira de viabilizar as conexões relações familiares, considerando a relevância desse aspecto no desenvolvimento de crianças e jovens. Da mesma forma é benéfico ao preso, pois garante a sua ressocialização, objetivo da função penal.
REFERÊNCIAS
“Comentários à Constituição brasileira de 1988”, Manoel Ferreira Filho (1990, Saraiva).
“Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente”, (2008, Malheiros).
“Curso de Direito Penal”, Paulo José da Costa Júnior (1992, Saraiva).
“Direito de visitas de menores a presos“, por Julia Maria Seixas as Bechara.
“ECA – Sancionada lei que garante convivência de crianças e adolescentes com pais presos”. Publicado por MPPR, em 9 de abr. de 2014.
“ECA 32 anos: origem e avanços do Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil!”. Publicado na Childhood Brasil, em 13 de jul. de 2022.
Por Lucas Ramos
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grande texto !
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