Por Fernanda Vanetti
“E não conseguia compreender e tentava desviar seus mórbidos e desesperançados pensamentos e substituí-los por outros mais razoáveis, mais saudáveis, mas a ideia [da morte] – e não apenas a ideia, mas a realidade tal qual se apresentava – voltava a todo momento para enfrentá-lo.” – A Morte de Ivan Ilitch, Leon Tostói
Setembro, quatro anos atrás.
O falecimento dela foi o primeiro contato direto que eu tive com a morte. Antes, a morte era apenas um conceito, algo abstrato carregado de eufemismos. Era um acidente que se escutava em noticiários sobre uma jovem celebridade que “partiu”. Era uma tragédia que se ouvia na mesa de jantar sobre um familiar de um amigo distante que “se foi”. Era sempre um familiar de um amigo, ou um amigo de um familiar. Mas nunca era um amigo, nunca um familiar. Até aquele dia.
Como uma espécie de epifania, a partir daquele dia tudo mudou. A realidade inexorável da morte dela à minha frente inundou meu peito de pavor e fez com que eu tomasse ciência do futuro perecimento daqueles que amo e, sobretudo, do meu próprio. A cena repugnante da palidez cadavérica, da carne definhando, do corpo gélido e inerte em contato com o caixão claustrofóbico. A sensação de um sofrimento vazio, que fere e anestesia. Da solidão nefasta e do silêncio sepulcral. A visão melancólica de que um dia serei eu.
Toda essa cena ainda atormenta meu sono. Repetitivamente. É bem verdade que a medida em que o tempo, meu maior adversário, passou, outros demais falecimentos a minha volta contribuíram para o acréscimo de novas imagens fúnebres na galeria da minha mente. Hoje, sou uma covarde que lamenta a covardia do destino. Que revestida pela proteção de seu cobertor, chora com a ínfima possibilidade de que o amanhã não chegará. Desde então, vivo em contagem regressiva, como uma bomba relógio sem ponteiros que a qualquer instante, sem nenhum aviso prévio, vai explodir. Não saber quanto tempo eu tenho me atormenta. Talvez, se eu soubesse, seria pior.
Assim como a lua, a ideia da morte não me aparece a todo momento. Ela ocorre periodicamente, em especial à noite. Nessa, ela apareceu, minguante ou crescente. Não sei a diferença. Exausta, tento resgatar memórias mais sensatas daquele dia para diminuir meu desespero. Penso no belo buquê de rosas amarelas disposto aos pés do caixão. Li em algum lugar que elas representam alegria, amizade e prosperidade. Engraçado, reflito, como aquele arranjo de flores destoa do resto. Acho que ela teria gostado desse contraste. Será que eu li isso mesmo ou apenas inventei? A mente humana prega peças.
Lembro-me da vez que, há muitos anos, ela me contou de um helicóptero cor-de-rosa que havia visto na televisão. Da mesma cor do seu celular antigo de flip. Rosa pink. Creio que era sua cor favorita, embora nunca tenha perguntado. Deixei de perguntar tanta coisa. O fato é que ela ficou encantada, obcecada, e, a todo momento, comentava que seu sonho era ter um helicóptero daqueles.
“Quando eu não estiver mais aqui, se você vir um helicóptero cor-de-rosa no céu, saiba que serei eu te olhando de cima” ela me disse um dia, com certeza não com essas palavras. A mente humana prega peças.
Não sou e nunca fui religiosa. Meu ceticismo não me permite acreditar na vida após a morte, apenas desejar desesperadamente que ela exista. Mesmo assim, me agarrei na fala dela por sua beleza, pela poesia proporcionada naquele instante, ou, quem sabe, pela migalha de esperança de que aquilo poderia realmente ocorrer. Ter fé seria um caminho bem mais fácil. Seria a solução de meus problemas, crer em algo maior.
Lembro-me da vez que estava caminhando nas ruas vazias e ensolaradas do ano retrasado, despretensiosamente, apenas para fugir da prisão que havia se tornado minha casa. Apesar da quietude atípica da cidade, começo a ouvir um barulho alto mas longínquo sobrevoando minha cabeça. Antigamente, um som comum como aquele não me faria nem levantar o rosto. Contudo, naquela época, os voos de avião haviam sido cancelados, de modo que aquele simples ruído me gerou estranheza. Portanto, levantei o rosto e tentei enxergar, mesmo sem óculos, a fonte sonora no céu. Minha miopia faz com que meus olhos pareçam lentes desfocadas de uma câmera. De longe, consigo vislumbrar as formas e cores das coisas, mas não seus detalhes.
Consegui avistar por um segundo, nem isso, a forma voadora no céu antes dela desaparecer entre os prédios. Os raios de sol penetrando minha pupila e a falta de óculos, sejam escuros ou de grau, dificultaram minha visão. De todo modo, consegui vislumbrar sua forma e acho que consegui vislumbrar sua cor. Não era um avião, eu já deveria saber por que o barulho é distinto. Era um helicóptero, tenho certeza. Era um helicóptero, desconfio que roxo ou vermelho. Ou cor-de-rosa.
Meu coração disparou e por um momento pensei que ia vomitá-lo. Será? Deve ter sido coincidência, não tenho certeza nem se era rosa. Estava tremendo, suando, paralisada no meio fio. Por mais um segundo eu enxergava a cor, poderia ter me certificado de que era um helicóptero rosa. Porém, o que mudaria? Mesmo se fosse, provavelmente não significaria nada, pensei. Apenas um acaso, uma coincidência.
Coloquei então na minha cabeça que avistar uma única vez um helicóptero possivelmente cor-de-rosa não significava que ela estava me olhando de cima. Entretanto, se eu o visse mais uma vez, e se ele fosse realmente rosa pink, da mesma cor do antigo celular dela… Nesse caso poderia significar algo. Satisfeita com a condição criada, tornei a caminhar despretensiosamente, sem esboçar emoção. Um sofrimento vazio, que fere e anestesia. Nunca mais vi um helicóptero cor-de-rosa.
Meu corpo volta à realidade, ao presente. O relógio de pulso sob a mesa de cabeceira apita indicando a mudança de horário e ela retorna. A ideia da morte me invade, como uma barragem de água que se rompe. Tateio o breu em busca do relógio e pressiono o botão de brilho para visualizar o horário. Minha nossa, já são duas horas da manhã, penso. Duas horas inutilizadas, gastas rolando na cama, tentando em vão adormecer. Foram duas horas a menos de sono. São duas horas a menos de vida. Mais um lembrete de minha finitude. A visão melancólica de que um dia serei eu.
“Mas estava tudo bem, desde que ele não pensasse nela. Ela não estava ali.” – A Morte de Ivan Ilitch, Leon Tostói
Publicado por Fernanda Vanetti
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